Primeiro foi o santuário de Lourdes; agora, o de Aparecida. Lugares que atraem milhões de peregrinos do mundo todo estão se perguntando o que fazer com os mosaicos do Centro Aletti, fundado e dirigido pelo padre jesuíta esloveno Marko Ivan Rupnik, a quem foram impostas várias medidas restritivas à medida que os escândalos de abuso cometido por ele contra adultos foram se avolumando. O Dicastério para a Doutrina da Fé chegou a analisar as denúncias, mas considerou que os primeiros casos divulgados, por terem ocorrido havia décadas, haviam prescrito; mesmo assim, a ordem jesuíta, com autonomia para seguir adiante com as investigações, resolveu proibir Rupnik de realizar atividades públicas, ouvir confissões e ser diretor espiritual.
O padre Rupnik e o Centro Aletti devem ser, hoje, os principais nomes da arte sacra no mundo. Além de Lourdes e Aparecida, há obras na Capela Redemptoris Mater, no Vaticano; na Basílica da Santíssima Trindade, em Fátima (é a igreja nova, redonda; menos mal que o crucifixo não é dele, foi cometido por uma artista irlandesa); e no santuário em honra ao Padre Pio de Pietrelcina, na Itália, apenas para citar os locais mais importantes. Tem quem goste, e tem quem não goste. Eu estive em Aparecida em janeiro e pude ver bem de perto a fachada norte. Particularmente, achei os mosaicos bonitos, ainda que não sejam o meu estilo artístico favorito. Posso discordar das opiniões litúrgicas, teológicas e artísticas de Rupnik (seu desprezo pelo barroco é uma coisa bizarra), certamente me revolto com o que ele fez, mas isso não me impede de reconhecer o seu talento.
Quem dera fosse simplesmente o caso de lembrar que somos capazes de separar a obra de seu autor. No entanto, existe uma dimensão adicional nos casos de abuso cometido por religiosos
A questão, aqui, é que há muita coisa diferente a colocar na balança, pois o mérito artístico é o de menos. “Lourdes é um lugar onde muitas vítimas se voltam para a Imaculada Conceição em busca de consolo e cura. A angústia delas diante dos mosaicos do padre Rupnik neste mesmo lugar é grande: não podemos ignorar isso”, disse o bispo de Lourdes, Jean-Marc Micas, no fim de março. Reparem que não estamos falando apenas das vítimas do padre Rupnik, mas de todas as vítimas de abusos, que infelizmente são muitas, no mundo todo.
Quem dera fosse simplesmente o caso de lembrar que somos capazes de separar a obra de seu autor (desde que, claro, não se trate de arte que sirva de apologia ou justificativa para as opiniões desprezíveis ou crimes de seus autores). Roman Polanski é um estuprador foragido da Justiça norte-americana, e mesmo assim podemos admirar seus filmes, para ficar em um exemplo extremo. Mas existe, sim, uma dimensão adicional nos casos de abuso cometido por religiosos, não temos como negar: a hipocrisia de quem tem o nome de Deus nos lábios – e nas mãos, no caso do artista sacro – enquanto comete as maiores perversidades. Também é verdade que, como explicou a assessoria de imprensa do Santuário de Aparecida à ACI Digital, os mosaicos são do Centro Aletti, não de Rupnik; 177 profissionais, incluindo 27 mosaicistas, trabalharam na fachada norte. Isso serve de atenuante, embora seja muito difícil separar o nome de Rupnik do trabalho feito, e os próprios murais explicativos em Aparecida mencionam o esloveno.
Por mais absurda que eu considere essa onda iconoclasta que reescreve ou simplesmente cancela obras consideradas “ofensivas” e que vê microagressão em tudo, reconheço que esta é uma decisão bem difícil. Não estou a par das conversas que vêm ocorrendo – o grupo de trabalho formado em Lourdes tem uma vítima de abuso e um psicoterapeuta, além do bispo e de um especialista em arte sacra – e, tendo isso em mente, a minha tendência seria a de manter as obras, mas sem ignorar a pessoa por trás delas; informações sobre quem é o padre Rupnik e o que ele fez deveriam estar presentes em materiais informativos impressos e on-line, bem como em locais acessíveis nos santuários propriamente ditos. Varrer o assunto sob o tapete seria a pior coisa a se fazer agora.
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