Confesso que vou esperar uma tradução oficial em português do documento final do Sínodo para fazer uma avaliação mais criteriosa. Até agora, a única versão oficial é aquela em italiano, que li rapidamente. Tem um ou outro trecho complicado, como quando diz que “a questão do acesso das mulheres ao ministério diaconal permanece aberta” – lamento dizer, mas, se estamos falando de sacramento da Ordem, não tem nada aberto aí, não. De resto, sinceramente me parece algo feito por um gerador de lero-lero eclesiástico, que junta vários termos piedosos, uma tonelada de citações bíblicas, e não entrega nada de prático – até aí, dadas todas as expectativas em cima do Sínodo, talvez isso seja até bom. Tem algumas coisas que o pessoal chegado em novidades vai adorar, como a exortação a sermos “missionários da sinodalidade” – aliás, parece que finalmente descobriram o que é sinodalidade: “um caminho de renovação espiritual e de reforma estrutural para tornar a Igreja mais participativa e missionária, para torna-la mais capaz de caminhar com todos os homens e mulheres, irradiando a luz de Cristo”. O que isso quer dizer exatamente, na prática, acho que continuaremos sem saber.
Muito melhor que ler o documento final do Sínodo é ler Dilexit nos, a nova encíclica do papa Francisco, divulgada no dia 24 e que trata “sobre o amor humano e divino do Coração de Jesus”. Ela nos recorda daquilo que faz o cristianismo ser único, e que era um dos principais temas do pontificado de Bento XVI: o cristão não é alguém que aderiu intelectualmente a uma série de postulados, nem um seguidor de um código moral e comportamental, mas é alguém que teve um encontro pessoal com Cristo, que desenvolveu uma relação com Ele. Na encíclica, o papa afirma que a devoção ao Coração de Jesus é, no fim das contas, o reconhecimento do amor infinito, incondicional e gratuito de Deus por cada um de nós e por toda a humanidade, como diz Francisco neste trecho:
“Tudo isto, à primeira vista, pode parecer um mero romanticismo religioso. No entanto, é o que há de mais sério e mais decisivo. Encontra a sua expressão máxima em Cristo pregado numa cruz. Essa é a palavra de amor mais eloquente. Não se trata de algo superficial, não é puro sentimento, não é uma alienação espiritual. É amor. Por isso, quando São Paulo procurava as palavras certas para explicar a sua relação com Cristo, disse: ‘amou-me e a Si mesmo se entregou por mim’ (Gl 2, 20). Esta era a sua maior convicção: saber-se amado. A entrega de Cristo na cruz subjugava-o, mas só fazia sentido porque havia algo ainda maior do que essa entrega: ‘Amou-me’. Quando muitas pessoas procuravam em várias propostas religiosas salvação, bem-estar ou segurança, Paulo, tocado pelo Espírito, soube olhar além e maravilhar-se com o que há de maior e mais fundamental: ‘Amou-me’.” (46)
“O modo como nos ama é algo que Cristo não quis explicar-nos exaustivamente. Mostra-o nos seus gestos. Observando-O, podemos descobrir como trata cada um de nós, mesmo que nos custe perceber isso.”
Papa Francisco, na encíclica Dilexit nos.
Meu conselho é que o leitor reserve um tempo para saborear o texto, do qual só darei aqui algumas pinceladas e realçarei alguns insights. O papa lembra que a devoção ao Coração de Jesus, embora sempre tenha feito parte da vida da Igreja – e Francisco traz uma profusão de citações que o demonstram –, foi especialmente uma resposta a uma série de distorções da fé que eram frequentes na época em que Santa Margarida Maria Alacoque teve suas experiências místicas, como as “formas de espiritualidade rigoristas e desencarnadas que esqueciam a misericórdia do Senhor” (80). Confesso que pode não ser a mesma coisa, mas aqui me vieram à mente as vezes em que vi influenciadores católicos abrindo suas “caixinhas de perguntas” nas mídias sociais e respondendo com patadas a perguntas de gente angustiada, aflita ou que apenas queria pedir orações. A esse propósito, Francisco diz: “Não tenhas medo. Deixa-O [Jesus] aproximar-se e sentar-se ao teu lado. Podemos duvidar de muitas pessoas, mas não d’Ele. E não te paralises por causa dos teus pecados. Recorda-te que muitos pecadores ‘sentaram-se com Ele’ (Mt 9, 10) e Jesus não se escandalizou com nenhum deles” (37).
Contra certos “analistas de conjuntura eclesial” que propõem vigilância sobre as devoções populares, o papa avisa: “que ninguém ridicularize as expressões de fervor devoto do santo povo fiel de Deus, que na sua piedade popular procura consolar Cristo. E convido cada um a perguntar-se se não há mais racionalidade, mais verdade e mais sabedoria em certas manifestações desse amor que procura consolar o Senhor do que nos atos de amor frios, distantes, calculados e mínimos de que somos capazes aqueles que julgamos possuir uma fé mais reflexiva, cultivada e madura” (160).
Falando em devoção, Francisco recomenda vivamente a comunhão nas primeiras sextas-feiras do mês, bem como a adoração eucarística às quintas-feiras. Sobre a primeira, que foi um belo antídoto ao rigorismo jansenista, o papa afirma que “hoje também faria muito bem por outra razão: porque no meio do turbilhão do mundo atual e da nossa obsessão pelo tempo livre, do consumo e da distração, dos telefones e das redes sociais, esquecemo-nos de alimentar a nossa vida com a força da Eucaristia” (84). Já o hábito da adoração eucarística, “como não o recomendar? Quando alguém vive com fervor esta prática, junto de tantos irmãos e irmãs, e encontra na Eucaristia todo o amor do Coração de Cristo, ‘adora juntamente com a Igreja o símbolo e como que a marca da caridade divina, caridade que com o coração do Verbo encarnado chegou até a amar o gênero humano’” (85).
“Eis aqui este Coração que tanto tem amado os homens, que a nada se tem poupado até se esgotar e consumir para lhes testemunhar o seu amor”, disse Jesus a Santa Margaria Maria. Diz Francisco que, se soubermos contemplar o Coração de Cristo, reencontraremos também o nosso coração, perdido nos algoritmos, no narcisismo, na autorreferencialidade, no egoísmo. E vice-versa: “só o coração é capaz de colocar as outras faculdades e paixões e toda a nossa pessoa numa atitude de reverência e obediência amorosa ao Senhor”, diz o papa (27). Se temos presente o amor de Deus por nós, desejaremos sempre retribuir, por exemplo reparando as ofensas feitas a Jesus e levando-O a todos os demais: “Falar de Cristo, pelo testemunho ou pela palavra, de tal modo que os outros não tenham de fazer um grande esforço para o amar é o maior desejo de um missionário da alma” (210).
Enfim, Dilexit nos é um texto incrível, profundo, obrigatório, talvez um dos melhores do papa Francisco. Mas não posso deixar de mencionar uma ironia que reparei aqui:
“Gostaria de acrescentar que o Coração de Cristo nos liberta, ao mesmo tempo, de um outro dualismo: o de comunidades e pastores concentrados apenas em atividades exteriores, em reformas estruturais desprovidas de Evangelho, em organizações obsessivas, em projetos mundanos, em reflexões secularizadas, em várias propostas apresentadas como requisitos que, por vezes, se pretendem impor a todos. O resultado é, muitas vezes, um cristianismo que esqueceu a ternura da fé, a alegria do serviço, o fervor da missão pessoa-a-pessoa, a cativante beleza de Cristo, a gratidão emocionante pela amizade que Ele oferece e pelo sentido último que dá à vida. Em suma, outra forma de transcendentalismo enganador, igualmente desencarnado.” (88)
Não é por nada, não, mas... “atividades exteriores”, “reformas estruturais”, “organizações obsessivas”, “reflexões secularizadas”, “propostas apresentadas como requisitos que se pretendem impor a todos”... não parece com toda essa conversa de sinodalidade, reformas curiais e coisas do tipo, não?
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