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Fui seguir o conselho do papa Francisco e ler literatura. Felizmente, apareceu uma promoção e consegui um dos livros nos quais estava de olho: O poder e a glória, do inglês Graham Greene, publicado em 1940 e ambientado no México sob a violentíssima perseguição governamental aos católicos, que resultou na chamada “guerra cristera”. Por mais que alguns leitores torçam o nariz para a biografia de Greene – convertido para poder se casar com a mulher que depois trairia, chegado do Fidel Castro, adepto de visões meio heterodoxas sobre a vida espiritual –, digo que o livro vale a pena e, ainda que ambientado em uma circunstância muito específica, tem muito a reverberar entre os católicos de hoje.
O poder e a glória segue as tentativas de um padre para escapar da repressão no estado mexicano de Tabasco – não há indicação geográfica explícita no livro a esse respeito, mas a conclusão é fácil devido à citação dos locais mais tolerantes para onde o padre tenta fugir. Sob um governo comunista e ateu entre 1920 e 1935, Tabasco foi o estado mexicano que mais perseguiu a Igreja – as regras anticlericais em vigor nacionalmente eram aplicadas com mais ou menos rigor dependendo do estado. A história do livro certamente se passa depois de 1928, pois uma das personagens secundárias é uma mãe que lê para seus filhos a história do martírio do adolescente José Sánchez del Río.
Em Tabasco, as igrejas foram demolidas, ser pego com livros religiosos dava cadeia e os padres foram duramente perseguidos: ou foram fuzilados, ou fugiram. Sobraram apenas dois: um, o padre José, seguiu as ordens do governo, largou a batina e se casou, vivendo à custa do Estado; o outro é o protagonista do livro e não sabemos seu nome: quando muito, ele é descrito como o “padre bêbado”, devido à sua paixão pela aguardente. Entre uma e outra tentativa frustrada de fuga, ele passa por vilarejos de Tabasco, contando com a boa vontade dos locais enquanto é caçado por um tenente da polícia local, um Javert piorado.
Os padres de Greene são indignos, mas têm total consciência da sua indignidade
Eu entendo por que O poder e a glória nem sempre é visto com simpatia pelo leitor católico. Afinal, é uma história em que nenhum dos personagens padres presta. Um é apóstata e o outro é um alcoólatra que tem outros esqueletos no armário. Quanto a isso, eu nem precisaria dizer que, no fundo, não temos a menor ideia de como agiríamos em uma situação dessas – gostamos de pensar que sempre faríamos o correto, mas a verdade é que não sabemos. O mais importante é que os padres de Greene são indignos, mas têm total consciência da sua indignidade. O padre José praticamente tem vergonha de sair à rua, porque a zombaria das crianças da cidade realmente fala fundo dentro dele. Quanto ao “padre bêbado”, ele diz mais de uma vez a interlocutores que não será um mártir, mesmo se for morto por ser padre; uma de suas maiores angústias (talvez a maior, até mais que o medo de ser pego e fuzilado) é não ter a quem confessar seus pecados. Logo no início do livro (e por isso não posso ser acusado de dar spoilers), ele perde a chance de embarcar em um navio que o levaria para fora de Tabasco porque é chamado para atender um moribundo.
Quantos dos padres indignos de hoje têm esse senso de responsabilidade e uma consciência ainda capaz de acusá-los dos próprios pecados? O mais provável é que tenham orgulho deles... Quantos padres indignos ainda têm fé sincera no próprio “dom que recebera e que ninguém lhe podia arrancar”, o “de colocar Deus na boca de um homem e de lhe dar o perdão divino”? Como diz o próprio Greene, citado por John Updike na introdução da edição que li, em O poder e a glória o autor apresenta uma tese: de que a dignidade sacerdotal permanece mesmo no sacerdote mais pecador. E é pelo olhar do “padre bêbado” que nos lembramos de uma verdade básica do cristianismo, mas fácil de esquecer: que Cristo morreu por todos, todos mesmo, do mais santo ao mais pecador: até pelo tenente que persegue os padres, pelos prisioneiros sem nenhum pudor, pelo padre José, pelos “covardes e corruptos” da terra.
E o que dizer dos católicos do livro? Que, mesmo cientes dos muitos pecados do “padre bêbado”, o protegem da perseguição apesar do altíssimo prêmio oferecido pelo governo por sua cabeça? Que nem sequer esperam pelo nascer de um novo dia para confessar seus pecadilhos triviais depois de anos sem ver um sacerdote? O poder e a glória é ficção, mas a realidade que descreve foi muito real – Greene escreveu o livro depois de viajar pelo México, inclusive pelo estado de Tabasco, e presenciar a perseguição anticatólica – e ainda o é em muitos países onde os cristãos são perseguidos. No mínimo, isso nos faz pensar sobre o privilégio que temos, e se estamos aproveitando-o bem.
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Em muitos aspectos, O poder e a glória me lembra Silêncio, de Shūsaku Endō, escrito em 1966 e ambientado no Japão do século 17. São circunstâncias semelhantes – embora os perseguidores japoneses me pareçam mais cruéis que os mexicanos – e o mesmo sentimento entre os católicos perseguidos; há um padre apóstata, Ferreira; os outros dois jesuítas, os protagonistas Rodrigues e Garpe, não têm os podres do “padre bêbado” de Greene, mas precisam enfrentar os mesmos dilemas, e até hoje, anos depois de ter lido o livro, eu realmente não sei dizer se eles fizeram as escolhas certas; o livro ficou remoendo dentro de mim por muito tempo.
(Uma observação: alguns leitores talvez tenham visto o filme dirigido por Martin Scorcese. Eu ainda recomendo que leiam o livro, porque ele tem sutilezas impossíveis de reproduzir fielmente em outro meio – mesmo para um gênio como Scorcese.)
E pronto: agora, em vez de uma, você tem duas recomendações de livros. O poder e a glória e Silêncio não são “fáceis”, no sentido de nos colocarem diante de um punhado de realidades tristes, da perseguição, da apostasia e dos podres daqueles que Cristo chamou para agirem em nome dEle. Mas os pecadores da ficção nos recordam que os pecadores da vida real somos muitos, e por todos esses o Salvador se ofereceu na cruz.
Em muitos aspectos, “O poder e a glória” me lembra “Silêncio”, de Shūsaku Endō, escrito em 1966 e ambientado no Japão do século 17
Basílica Nacional de Aparecida esclarece sobre imagem com manto de arco-íris
Eu bem que gostaria de ter feito a coluna de hoje apenas com sugestões de livros, mas a realidade se impôs. Anda circulando por aí uma foto de uma imagem de Nossa Senhora Aparecida usando um manto com as cores do arco-íris, dentro da Basílica Nacional de Aparecida. O contexto é uma romaria promovida pela Rede Nacional de Grupos Católicos LGBT, e que estava marcada para o último sábado, 16 de novembro.
A romaria é real mesmo, e a foto também (está no perfil da entidade no Instagram). Mas, antes que saiam malhando os redentoristas que administram o Santuário Nacional, reparem no detalhe do enquadramento fechado, que dá a entender que a imagem era maior do que realmente era (concluo isso pelos dedos que seguram o pedestal da imagem), e que muito certamente não foi colocada em nenhum lugar de destaque: o mais provável foi que alguém a segurou e fizeram a foto de baixo para cima.
Além disso, a coluna procurou o Santuário Nacional (o que eu duvido que muito influenciador católico tenha feito), que respondeu afirmando que não veta romarias específicas e que nem a imagem da foto, nem a própria romaria LGBT receberam qualquer tipo de destaque no dia 16. Vejam a íntegra da resposta:
“O Santuário Nacional é o destino semanal de mais de 300 romarias registradas e organizadas com antecedência pelos seus próprios idealizadores, que peregrinam até a Basílica de Nossa Senhora para expressarem sua devoção à Padroeira do Brasil.
As motivações, agradecimentos, ou pedidos que cada romeiro carrega em seu coração não são exigidos quando há o registro da romaria, para que se preserve a individualidade na relação de cada um com Deus, através de intercessão de Nossa Senhora.
Sobre esta peregrinação em específico, não houve registro de participação em nenhuma celebração durante o dia. A imagem citada é um objeto de devoção pessoal e não faz parte das [imagens] oficiais.”