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Marcio Antonio Campos

Marcio Antonio Campos

Vaticano, CNBB e Igreja Católica em geral. Coluna atualizada às terças-feiras

Carlo Acutis

O santo veste Nike

O bem-aventurado Carlo Acutis: imagens costumam representá-lo com as roupas que usava no dia a dia. (Foto: Associação Carlo Acutis/Site oficial)

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Então, poderíamos estar todos aqui celebrando a notícia da iminente canonização do bem-aventurado Carlo Acutis, e falando de como o seu exemplo de santidade na vida cotidiana, por meio da devoção eucarística e da procura pelos sacramentos – incluindo a confissão –, poderia arrastar para Cristo uma infinidade de jovens que hoje parecem não ver tanto sentido na vida. Poderíamos estar falando de como Acutis, que usou a internet para espalhar a fé, poderia incentivar esses mesmos jovens a usar bem ferramentas que hoje estão mais para causadoras de vício e ansiedade, destruindo a saúde mental de tanta gente. Mas não, estamos discutindo se é apropriado retratar o futuro santo em imagens nas quais ele usa suas roupas do dia a dia e tênis (de marca).

Meu amigo Rafael de Mesquita Diehl, doutor em História com interesse especial em história do vestuário, publicou dias atrás um excelente texto no Facebook, que ele me autorizou a reproduzir na íntegra aqui:

Uma defesa da imagem do beato Carlo Acutis – A partir da história do vestuário e da arte sacra

Recentemente alguns meios virtuais católicos – em geral de tendência mais tradicionalista – manifestaram incômodo com as imagens na qual o jovem Beato Carlo Acutis (1991-2006) é representado com roupas mais casuais como camiseta polo, calça jeans e tênis. Os argumentos dos tradicionalistas se resumem a dois: 1. não é conveniente que um santo seja representado com trajes informais em uma igreja, já que se espera que as pessoas se vistam de forma mais solene para irem aos ofícios litúrgicos; 2. a arte sacra, em especial a oriental, nunca representou os santos em trajes informais e originalmente representava os leigos em túnicas brancas em alusão às vestes batismais. Esses argumentos, entretanto, não se sustentam ao olharmos a história do vestuário dentro da Igreja e a história do desenvolvimento geral (ocidental e oriental) da arte sacra cristã. Vejamos pontualmente:

1. Primeiramente é preciso distinguir entre trajes de gala, trajes formais, trajes de trabalho, trajes informais ordinários e trajes informais domésticos ou circunstanciais. Os trajes de gala são aqueles usados em grandes solenidades civis, militares ou religiosas, e geralmente por algumas classes sociais bem específicas (como hoje são o fraque, o meio fraque, a casaca, o smoking ou as fardas militares de gala). Podemos definir como traje formal aquelas vestimentas usadas mais comumente para ocasiões e ambientes formais ou para trabalhos que lidam com maior formalidade (como é o caso atual do terno ou costume com camisa social e gravata). Os trajes de trabalho são aquelas roupas usadas com finalidade prática para o trabalho e podem variar bastante de forma e tipo de material conforme a necessidade exigida (podem variar desde uma toga de juízes e advogados até um macacão de um operário). Os trajes informais ordinários são aquelas roupas que a maioria das pessoas usam no dia a dia, podendo haver variações (mas o mais comum são camisetas ou camisas polo, calça jeans, tênis, moletom e jaqueta). Já os trajes informais domésticos ou circunstanciais são aqueles que são usados mais comumente em casa ou em momentos descontraídos (como uma bermuda e um chinelo) ou para situações informais bem específicas (como um pijama para dormir ou um traje de banho para praia ou piscina).

2. A preocupação do catolicismo tradicionalista de hoje com a formalidade cotidiana nada tem a ver com um contínuo da história da Igreja, mas com uma preocupação bem específica das sociedades ocidentais do século 19 e primeira metade do século 20 que cultivaram um excessivo formalismo (que não se refletia apenas no vestuário, mas também nas formas de falar e gesticular, mesmo em ambiente familiar e doméstico). Isso gerava situações ridículas, como impedir alguém de frequentar um cinema ou circular em determinadas ruas por não estar usando uma gravata. Na verdade, esse formalismo excessivo gerava uma cultura esteticista que valorizava mais a forma que o conteúdo (bem típico da vivência religiosa de aparências do século 19 e primeira metade do século 20, em especial entre os homens).

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3. O conceito de formalidade do mundo antigo onde o cristianismo nasceu e se desenvolveu era muito diferente do conceito oitocentista. Primeiro, que os trajes mais formais dos judeus, gregos e romanos em seus formatos se pareceriam muito mais com camisetas e bermudas com uma toalha enrolada no corpo do que com um impecável terno de alfaiataria. Inclusive em muitas culturas nem sequer existe uma diferenciação muito rígida quanto à forma dos vestuários mais formais e informais, mudando apenas o tipo de tecido, pintura ou ornamentação (como no caso dos antigos gregos ou na Europa feudal dos séculos 9.º-10.º, por exemplo).

4. É falso que a arte cristã – mesmo a oriental – tenha representado os santos (leigos ou eclesiásticos) sempre com trajes clericais ou com a túnica branca batismal. Na arte das catacumbas (em um período que nem sequer havia veste clerical ou litúrgica) os santos eram representados com seus trajes ordinários: a túnica romana (de tamanhos variados de barra para os homens) e o manto ordinário (o himation grego retangular de drapeado simples, e não a toga formal de drapeado mais elaborado – para ter uma ideia mais próxima de como os judeus do tempo de Jesus se vestiam seria preciso olhar os afrescos do século 3.º da sinagoga de Dura-Europos na Síria). Mesmo para santos clérigos entre os séculos 4.º e 6.º (quando já estava se desenvolvendo um traje litúrgico a partir da forma da túnica longa e do manto em forma de ponho de uso ordinário e não formal – já que os mantos formais eram ou o paludamentum de origem militar ou a toga de origem patrícia) havia representações com trajes mais ordinários e informais: em um mosaico da catacumba de São Januário, em Nápoles, do século 5.º, o bispo São Quodvultdeus de Cartago é retratado vestindo apenas uma túnica (sem qualquer tipo de manto, em uma época que era ainda comum em muitos casos que até diáconos usassem manto em forma de poncho sobre a túnica na liturgia); em um afresco do século 4.º, na Basílica de São João de Latrão, em Roma, o bispo Santo Agostinho de Hipona é representado usando uma túnica com um simples manto himation drapeado sobre um dos ombros de forma bem “relaxada”. Em um mosaico do século 5.º, na Basílica de São Cosme e São Damião, em Roma, os dois santos médicos são representados com túnicas e mantos ordinários com as cores da época, diferentemente dos apóstolos São Pedro e São Paulo, que os ladeiam trajando túnicas e mantos brancos. Na arte cristã mais antiga (romana ocidental e romana oriental/bizantina) as túnicas e mantos brancos são um traje distintivo dos apóstolos, profetas e de alguns mártires. Os santos militares sempre foram representados com seus trajes militares (quer fosse a túnica com paludamentum mais foral, quer fosse com os trajes de batalha). Na verdade, não me recordo de ter visto representações mais antigas de santos leigos trajando a túnica longa branca batismal.

5. As vestes na iconografia cristã sempre foram – como outros instrumentos empunhados pela figura representada – uma forma de facilitar uma rápida identificação do santo pelos fiéis (em especial os iletrados) que contemplavam a imagem. Nesse sentido podemos dizer que o vestuário na arte sacra apresentava também uma função pedagógica e de identificação. Como os fiéis que não sabiam ler as inscrições poderiam distinguir os santos com facilidade se todos estivessem representados com longas túnicas brancas? As vestes deveriam fazer referência ao modo de vida, função ou forma de martírio do santo. Por isso monges eram retratados com seus hábitos; eremitas, com suas vestes esfarrapadas ou seminus; clérigos, com suas vestes litúrgicas; monarcas, com seus trajes de coroação ou do cotidiano. Quanto aos leigos, muitas vezes são representados com trajes do cotidiano (como mártires ortodoxos da Europa oriental e dos Bálcãs, ou os santos Domingos Sávio e os pais de Santa Teresinha, por exemplo) ou com trajes de trabalho/ofício (como as imagens de Santo Isidro ou dos pastorzinhos de Fátima em trajes de camponeses, ou dos santos militares com armadura de batalha).

6. Se temos imagens de São Domingos Sávio e São Louis Martin de terno é porque na época esse era o traje ordinário, informal, do cotidiano (o traje formal da época era a casaca e calça em cores preta, com colete preto para o dia e branco para a noite). Era com esses trajes que eles iam ordinariamente à missa, assim como hoje se vai ordinariamente de camiseta e calça jeans (por mais que seja um detalhe de delicadeza escolher uma roupa melhor para ir à missa dominical, não há nenhuma regra da Igreja que exija que esse “melhor” seja equivalente a “formal”. O que se exige é que seja um traje modesto quanto ao pudor do corpo).

7. A idealização da vivência católica da primeira metade do século 20 e a elevação de detalhes completamente secundários e acidentais de formalidade e estética a uma dimensão de sacralidade por Plínio Corrêa de Oliveira criaram nos meios católicos tradicionalistas uma preocupação excessiva com uma formalidade que, nos lugares onde o catolicismo cresce e é praticado com seriedade até o ponto do martírio, é tema completamente irrelevante. Lembremos que o traje dos religiosos e eremitas não era um traje formal. Muito pelo contrário! Era um traje deliberadamente pobre e rústico. Alguns santos eremitas ou mártires são representados nus ou seminus, o que certamente está longe de ser solene ou formal.

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A Carta a Diogeneto do século 2.º já dizia que os cristãos não se diferenciavam dos demais pela forma como se vestiam. A modéstia também exige que o vestuário se adapte às circunstâncias, tempos e lugares. Carlo Acutis vestia-se ordinariamente com camiseta e calça jeans. Era assim que ele fazia a maior parte do seu apostolado de divulgação virtual, amizade e convívio social. É essa a sua característica distintiva como santo. Um jovem de hoje identificaria mais facilmente Carlo Acutis como um santo jovem do século 21 se o visse vestido como um jovem se veste no dia a dia ou se o visse vestido de terno e gravata? É muito provável que, se o visse nesse segundo caso, pudesse pensar que fosse um jovem do tempo de nossos avós. Uma multidão de santos representados com os trajes de sua época, de seu ofício ou de sua cultura é a melhor forma de ilustrar que a santidade é algo acessível para todos os tempos e povos.

(A publicação original ainda tem links para uma série de imagens que reforçam os pontos que ele descreve no texto.)

Reparem que Diehl se atém à questão da roupa, e nisso a argumentação dele me parece irretocável. Isso não quer dizer, no entanto, que essas imagens de Carlo Acutis que estão aparecendo pela internet sejam totalmente adequadas – e aí já é minha avaliação, não a do meu amigo historiador. Em uma das imagens que vi, por exemplo, ele aparece segurando a hóstia consagrada de uma forma até meio displicente, algo que o próprio Acutis provavelmente jamais aprovaria. Em uma outra, a Eucaristia aparece quase como se fosse um medalhão no peito dele. Entendo a intenção de ressaltar a devoção eucarística do bem-aventurado, mas não é assim que se faz. Já o notebook que ele aparece carregando em algumas imagens, e que também foi criticado, me parece mais apropriado, já que ele usou a internet como meio de evangelização, especialmente com seu site sobre milagres eucarísticos.

O interessante da arte sacra e da iconografia dos santos é que não existe uma forma “oficial”, obrigatória, de representar beatos e santos – nem mesmo aquele retrato ou imagem que usam nas cerimônias de beatificação e canonização é uma referência que precise ser seguida a todo custo. Então, minha sugestão a quem não gostou das imagens de Carlo Acutis (e isso vale tanto para as críticas fundamentadas quanto para o formalismo exagerado que Diehl aponta) é simplesmente oferecer aos católicos algo melhor, que inspire mais devoção, o que for. Eu, por exemplo, se fosse artista sacro e quisesse mostrar o amor de Carlo Acutis pela Eucaristia, o representaria ajoelhado em um genuflexório diante do Santíssimo Sacramento – e poderia muito bem deixar as mesmíssimas roupas que ele aparece usando em suas fotos mais conhecidas (mas, como disse um amigo, também não precisam botar até a marca dos tênis). Em vez disso, se alguém quiser retratá-lo em “roupa de missa”, nada o impede de fazê-lo, e inclusive deve haver muitos registros do jovem para ajudar nessa tarefa. Sei que nosso senso estético anda meio desregulado nesses tempos, mas ainda confio na capacidade de os fiéis fazerem uma “seleção natural” e irem eliminando, com o tempo, os exageros na tentativa de retratar um santo adolescente.

Outro dia o Polzonoff me mostrou que chegaram a discutir no Twitter se driblar era pecado – no sentido literal mesmo, de ofensa a Deus. Ainda tenho esperanças de que tenha sido algum exercício retórico em vez de um debate sério. Boa parte desse quebra-pau online sobre as imagens de Carlo Acutis me lembrou dessa história. Gente de fé sólida, que ama a Igreja (falo ao menos dos amigos que conheço e que se meteram nessa discussão), está se pegando na internet sobre um tema no qual o católico tem muita liberdade, com alguns poucos argumentos bons escondidos no meio de um festival de rigorismo. Era melhor gastar esse tempo todo fazendo adoração eucarística – provavelmente é o que Carlo Acutis faria.

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