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Marcio Antonio Campos

Marcio Antonio Campos

Vaticano, CNBB e Igreja Católica em geral. Coluna atualizada às terças-feiras

“Minuta do golpe”

Um Judiciário decente inocentaria o padre José Eduardo

Padre José Eduardo
O padre José Eduardo, que tem mais de 400 mil seguidores no Instagram e foi indiciado pela PF pela suposta conspiração para um golpe de Estado. (Foto: Reprodução/ Rede Social)

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Passada uma semana da remoção do sigilo do relatório da Polícia Federal sobre a suposta trama golpista que teria o objetivo de impedir a posse de Lula no início de 2023, já posso dizer que li e reli com calma os únicos trechos que interessariam ao leitor de uma coluna sobre assuntos católicos: aqueles sobre a suposta participação do padre José Eduardo de Oliveira e Silva, da diocese de Osasco (SP), na tal conspiração. Ele foi colocado pela Polícia Federal no chamado “núcleo jurídico” do “golpe”, ou seja, aquele grupo encarregado de preparar uma minuta de decreto que permitiria a instauração de um estado de defesa, a manutenção de Jair Bolsonaro no poder, a prisão de autoridades, enfim, o que for.

Mas, antes de prosseguirmos, uma observação: absolutamente tudo o que vai a seguir depende de ser verdadeiro o que está no relatório. Em outros tempos, talvez não houvesse razão para dúvidas, mas esta é a mesma Polícia Federal que reverteu uma conclusão prévia para pedir o indiciamento de três pessoas por causa de um entrevero com Alexandre de Moraes no aeroporto de Roma, sem prova nenhuma de que eles “agrediram e ofenderam [Moraes] por razões completamente injustificáveis”. Em tempos de “use sua criatividade rsrsrs”, nas já imortais palavras de um juiz assessor de Moraes no Supremo, o ceticismo acaba justificado.

Dito isso, por mais que a PF afirme que o sacerdote “atuou juntamente com Filipe Martins e Amauri Feres Saad na elaboração de uma minuta de golpe de Estado”, não há, em todo o relatório, uma única evidência de que o padre José Eduardo tenha colaborado na redação do que quer que fosse. Não há troca de mensagens, nem depoimentos confirmando isso. No máximo, há as indicações, com base em dados de antenas de celular e registros de entrada em prédios como o Palácio do Alvorada, de que o padre esteve com Martins e alguns outros em locais nos quais também teria sido discutida a possibilidade de golpe, estado de defesa etc. A defesa do padre José Eduardo diz que o objetivo das viagens a Brasília era prestar atendimento espiritual a Martins e Bolsonaro, mas mesmo quem não quiser acreditar nesta versão terá de admitir que a “mão na massa”, a prova cabal da colaboração do padre (que é doutor em Teologia Moral) na tal minuta, não existe.

Não há, em todo o relatório da PF, uma única evidência de que o padre José Eduardo tenha colaborado na redação do que quer que fosse

Para encerrar essa parte, apenas para fins de argumentação, concedamos por um minuto que o padre José Eduardo tivesse contribuído para redigir alguma minuta ou decreto. Ainda assim, isso estaria enquadrado naquilo que o Direito Penal chama de “atos preparatórios” ao cometimento de um crime (no caso, a tentativa de golpe). Mas nem cogitação nem preparação são criminalizadas na lei brasileira, a não ser que tais atos em si constituam crime. Se alguém arromba e invade uma casa para matar alguém, mas muda de ideia e desiste voluntariamente de cometer o homicídio, não responde nem mesmo por tentativa de homicídio; no entanto, o arrombamento, que foi ato preparatório para o assassinato não ocorrido, também é um crime em si, e pelo qual se deve responder criminalmente. Acontece que redigir minutas de documentos não é crime. Em outras palavras, mesmo na pior das hipóteses não haveria nenhuma possibilidade de um tribunal isento condenar o padre José Eduardo por golpe de Estado – a bem da verdade, nem seria o caso de se oferecer denúncia, quanto mais de levá-lo a julgamento.

Infelizmente, sempre tem um “mas”

Acontece que a coisa não termina na inocência, do ponto de vista jurídico, do padre José Eduardo. Sendo verdadeiro o que está no relatório da PF (e ainda vou repetir essa ressalva algumas vezes), difícil negar que o sacerdote estivesse inteirado do que estaria sendo tramado. Ele enviou a terceiros, por e-mail, um artigo escrito por Amauri Saad com uma interpretação do artigo 142 da Constituição que validaria um golpe militar (ou “intervenção”, no eufemismo amplamente usado), e há a mensagem sobre quem irá “se f*der” se Bolsonaro fizer ou não fizer “o que tem que fazer”.

Imprudência não é crime, mas me entristece perceber que, ao ver o que estava em curso em Brasília, o padre José Eduardo não tenha resolvido se afastar imediatamente daquilo tudo. Se achou que a coisa toda daria certo e que assim a presença dele jamais seria trazida a público; se estava mesmo convicto da licitude legal ou moral do que estava sendo tramado; se considerava tudo uma resposta legítima a outro golpe, dado pelo STF e pelo TSE; se entrou nessa por qualquer outro motivo, pouco importa: ainda que não tenha participado ativamente de nenhum plano golpista, ter ciência dele já deveria ter bastado para ligar não uma luzinha, mas um holofote de alerta.

E a “oração do golpe”?

Eu consigo imaginar os delegados da PF escrevendo o relatório e pensando “uau, isso aqui vai viralizar”. E o sensacionalismo barato funcionou mesmo. Mas, caso o que está ali seja real, não tem oração alguma ali, ao menos não como entendemos o termo. O que existe é um pedido de oração, o que em circunstâncias normais seria a coisa mais normal do planeta envolvendo qualquer cristão. Acontece que também aqui tem um “mas”.

Na mensagem atribuída ao padre José Eduardo e endereçada ao frei Gilson Azevedo (sim, aquele frei Gilson), há o nome de 17 generais-de-exército, os chamados “quatro-estrelas”, com uma intenção específica: “para que Deus lhes dê a coragem de salvar o Brasil, lhes ajude a vencer a covardia e os estimule a agir com consciência histórica e não apenas como funcionários públicos de farda”. A mensagem é de 3 de novembro, antes, portanto, de todas as tais “reuniões do golpe”, mas depois do segundo turno da eleição presidencial.

De que forma o padre José Eduardo esperava que os generais fossem “salvar o Brasil”, “vencer a covardia” e “agir com consciência histórica”? Foi o que eu perguntei ao advogado Miguel Vidigal, que representa o padre José Eduardo. Ele lembrou que a PF vasculhou o celular do sacerdote, e que os dois padres conversam com muita frequência. “A PF fez uma perícia na hora que quis, no tempo que quis, não nos deu acesso para sabermos se estavam fazendo isso corretamente. Não sei se pinçaram isso de uma conversa grande, e o padre tampouco se lembra. Ele conversou muitas vezes com frei Gilson”, afirmou.

Rezar por golpe, “intervenção militar constitucional” etc., pedir para outros rezarem por golpe, não é crime. Não pode ser considerado nem mesmo incitação

O advogado também afirmou que os autores do relatório estão tirando conclusões sem oferecer o quadro completo. “Como ele [o padre José Eduardo] vai saber se isso é dele ou não é dele, qual foi o contexto da conversa, o que queria dizer a ‘covardia’, se ‘salvar o Brasil’ significaria golpe ou deixar acontecer a transmissão de poder como resultado das eleições? É complicado tirar uma frase de contexto e falar ‘isso aqui significa que ele queria golpe’”, afirmou Vidigal. No X, o padre José Eduardo respondeu ao oportunismo do frei Lorrane afirmando que a mensagem ao frei Gilson continha “uma lista de oração em que um golpe não se pedia”.

Vidigal ainda defendeu que “essas mensagens todas necessitam de perícias por parte de todos os investigados, cada um com seu próprio perito”, e ressaltou que se tratava de uma “conversa entre dois religiosos que se consultam um ao outro espiritualmente. Uma pessoa que não estava investigada. Foi pesca probatória, essa mensagem é imprestável para o processo”.

Eu, particularmente, tendo a crer que as referências a “salvar o Brasil”, “vencer a covardia” e “agir com consciência histórica” indicam o anseio por uma ruptura institucional com virada de mesa para impedir a posse de Lula, mas concedo também a possibilidade de o padre José Eduardo estar convencido de que algo assim teria amparo no artigo 142 da Constituição (uma interpretação da qual eu discordo, mas que é suficiente para o chamado “erro de proibição”). Ainda assim, insisto, rezar por golpe, “intervenção militar constitucional” etc., pedir para outros rezarem por golpe, não é crime. Não pode ser considerado nem mesmo incitação.

O padre José Eduardo deveria ser inocentado. Mas ele será?

A não ser que você tenha estado dormindo nos últimos cinco anos, creio que já saiba a resposta. A PF fez pesca probatória no celular do padre, e não aconteceu nada. Os policiais violaram o sigilo das conversas de aconselhamento espiritual do sacerdote (não o sigilo da confissão, porque ninguém se confessa pelo WhatsApp), e não aconteceu nada. Praticamente todos os réus do 8 de janeiro têm sido condenados sem uma única prova de que tenham cometido os crimes pelos quais respondem, e não acontece nada. STF e TSE trocam figurinhas “fora do rito”, escolhem os alvos da perseguição para só depois tentarem achar algum podre, e não acontece nada. O ministro que teoricamente seria uma das vítimas da conspiração vira relator do caso e vai julgar todo mundo, e não acontece nada. Os indiciados já podem se considerar condenados, e eu ficaria muito, mas muito surpreso com qualquer outro desfecho.

Rezem pelo padre José Eduardo; rezem pelos pobres coitados – inclusive muitos “coroinhas de Lula”, uns de hábito, outros de mitra – que estão aproveitando o episódio para achincalhar na internet um padre conservador e doutrinalmente ortodoxo; rezem por esse país onde muitos têm a democracia na boca, mas não na cabeça nem no coração; rezem para que seja feita justiça – se não agora, ao menos no Juízo Final, quando tudo será revelado sem subterfúgios nem “criatividade”.

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