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Marcio Antonio Campos

Marcio Antonio Campos

Vaticano, CNBB e Igreja Católica em geral. Coluna atualizada às terças-feiras

Entrevista papal

Por que lamento muito, mas não rasgo as vestes quando Francisco “faz o L”

O papa Francisco é cumprimentado por cardeais durante as celebrações do Domingo de Ramos na Praça de São Pedro. (Foto: Claudio Peri/EFE/EPA)

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O papa Francisco já foi notícia no mundo inteiro semana passada por causa da internação inesperada, mas no Brasil ele ainda rendeu manchetes por outro motivo: uma entrevista desastrosa em que ele resolveu limpar a barra de Lula e até de Dilma Rousseff. A conversa com o jornalista argentino Gustavo Sylvestre, do canal noticioso C5N, havia sido gravada antes de Francisco ser hospitalizado, mas foi ao ar enquanto o papa estava no Policlínico Gemelli. Para não me deixar influenciar por trechinhos selecionados da entrevista, assisti à íntegra, de pouquinho mais de uma hora:

O Brasil não aparece do nada; antes disso, Francisco e Sylvestre passam vários minutos falando da Argentina, e daí para a tentativa de assassinato de Cristina Kirchner, e daí para o “ódio político”, e aí para a prisão de Lula, depois para o lawfare, e a coisa degringola totalmente a partir do minuto 40 – é o jornalista quem cita Lula, Evo Morales e Cristina Kirchner como vítimas dessa prática, mas o papa continua o raciocínio e coloca Dilma no rolo.

Bom, em primeiro lugar, sim, o papa está errado. Existe um caminhão de provas que a força-tarefa da Lava Jato levantou contra Lula, e que as duas instâncias julgadoras que analisam a culpabilidade (tanto STJ quanto STF só analisam questões processuais, não se a pessoa é culpada ou inocente) levaram em consideração. Leiam as denúncias e as sentenças que está tudo lá. Quanto a Dilma, mesma coisa. Impeachment tem muito de juízo político, mas os crimes de responsabilidade cometidos nas pedaladas e demais gambiarras orçamentárias existiram. Novamente, leiam as peças, procurem os depoimentos dos que identificaram as pedaladas, e por aí vai. Documentação não falta para os dois casos; ainda que no caso de Lula o STF tenha inutilizado as provas todas, isso apenas significa que elas não podem ser mais usadas numa corte, não que a verdade possa ser reescrita.

Mas, se ele está errado, então... bom, então não muda muita coisa. O papa é um líder religioso. O que ele diz sobre o Lula é uma opinião política, pessoal, dele, que não obriga nenhum católico a nada e tem tanto valor intrínseco quanto as opiniões políticas de um esportista ou de um artista. Deus não deu ao papa o carisma de não falar bobagem, nem de jamais se equivocar em seus juízos pessoais. Por mais que alguns bispos e padres “coroinhas de Lula” queiram transformar essa entrevista em Magistério infalível, a verdade é que infalibilidade mesmo só se aplica em questões de fé e moral, e mesmo assim sob certas condições. Se Deus não protege o papa nem mesmo de decisões erradas no governo da Igreja (por exemplo, ele pode fazer nomeações equivocadas), muito menos vai impedi-lo de dizer alguma besteira sobre qualquer outro assunto.

Ama-se e respeita-se o papa pelo que ele é, não se condiciona esse amor e respeito ao que ele pensa ou ao que faz

Isso não significa, no entanto, que estamos diante de algo irrelevante. A fala não tem peso doutrinal algum, mas foi no mínimo uma tremenda imprudência e, no máximo, um enorme desastre. Não sei exatamente como Francisco chegou a essa conclusão sobre Lula e Dilma, se acreditou piamente no que lhe devem dizer os “coroinhas de Lula” ou se estudou o caso por conta própria (usando sabe Deus que fontes – Francisco fala explicitamente sobre reuniões com o ex-chanceler Celso Amorim). Mas isso pouco importa, na verdade; o que foi dito está dito, palavras têm consequências, e o papa está sujeito a elas. Nem falo da intromissão de um chefe de Estado em assuntos puramente seculares de um outro país (dizer que Lula é inocente das acusações criminais feitas contra ele é diferente, por exemplo, de o papa falar contra a aprovação de uma lei abortista ou de violações à liberdade religiosa em algum lugar), mas do risco de erosão da autoridade de Francisco (não do papado) como autoridade moral. Afinal, se o papa diz uma coisa dessas sobre pessoas cujos atos estão fartamente documentados, fechando os olhos para coisas tão evidentes, como garantir que ele não esteja falando bobagens quando se pronunciar sobre diversos outros assuntos semelhantes? Como ele vai pretender que os brasileiros – especialmente os não católicos – lhe deem ouvidos? Da próxima vez que o papa criticar os mafiosos italianos, por exemplo, o que impedirá alguém de lembrar que ele está passando pano para a corrupção no Brasil?

E o que fazemos quanto a isso? Se você é católico, lembre-se: o papa é seu, meu, nosso pai. E você não deixa de amar seu pai porque ele “faz o L”, ou porque tenha ideias equivocadas sobre o que quer que seja, ou porque faça besteiras de vez em quando. Você não o insulta nem briga com ele em público; você lamenta (e muito), mas segue amando e rezando por ele – inclusive rezando para que ele bote a cabeça no lugar. Isso me lembra a Tati Bernardi perguntando no Roda Viva como poderia perdoar o pai que votou em Bolsonaro, para receber uma linda entortada de Leandro Karnal: o problema talvez não seja a política. Ama-se e respeita-se o papa pelo que ele é, não se condiciona esse amor e respeito ao que ele pensa ou ao que faz – e acreditem, a história da Igreja tem lá seu punhadinho de papas que pensaram e fizeram sua boa cota de horrores.

E para quem, mais que perder a estima por Francisco, está perdendo até a fé, vale uma adaptação do aviso de Karnal a Bernardi: se você está pensando em deixar a Igreja por causa de Francisco, da CNBB, do padre Fulano ou do bispo Beltrano, o problema talvez não seja Francisco, nem a CNBB, nem o padre nem o bispo. Os papas vêm e vão – os bons, os maus, os gênios, os medíocres, os que governam mais “para dentro”, os que governam mais “para fora” –, mas a fé católica permanece a mesma e o Espírito Santo continua sempre a guiar a Igreja. Por mais que um grande papa, um grande bispo ou um grande padre (por “grande” leia-se simplesmente “santo”) atraia muitas pessoas para a fé, a pessoa que verdadeiramente importa é Cristo; os demais apenas apontam para Ele, que é o real fundamento da fé. Fiar-se nas pessoas, por melhores que sejam, é apoiar a fé no alicerce errado; abandonar a fé por decepção com um líder, especialmente quando seu erro está em assuntos que não dizem respeito a essa fé, é confirmar que o alicerce está mal construído.

Por isso, lamento demais, mas não perco a fé nem a estima pelo papa. Ele não vem pedindo que rezem por ele, desde os primeiros minutos de pontificado? Pois então: sigo rezando para que Francisco conduza seu pontificado como Deus quer – não como eu quero, nem como Francisco quer, mas como Deus quer.

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