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Lex orandi, lex credendi, diz o adágio latino que, em uma tradução livre, significa que a maneira como a pessoa reza, ou presta culto, determina a maneira como ela crê. Oração e culto respeitosos levam a uma fé sólida; oração e culto irreverentes levam a uma fé irreverente; e assim sucessivamente. A frase já passou pelo teste do tempo com louvor, e se provou verdadeira em inúmeras ocasiões. Mas, como neste mundo moderno tudo precisa ser medido, pesado, comprovado por números e por aí vai, a pesquisadora Natalie Lindemann resolveu buscar a ligação entre certas práticas litúrgicas (ou a falta delas) e um postulado central do catolicismo: a fé na Eucaristia como presença real de Cristo nas espécies consagradas.
Alguns dos resultados obtidos por ela foram publicados na edição mais recente da revista Catholic Social Science Review. No estudo, 145 católicos responderam a uma pesquisa on-line, em que eram perguntados sobre várias práticas litúrgicas e devocionais nas paróquias que frequentavam, e sobre sua fé na Eucaristia. Os participantes precisavam responder a essa última questão em uma escala de 1 a 5, em que (1) era “o pão e o vinho são símbolos de Jesus; estou certo de que Ele não está realmente presente” e (5) era “estou certo de que Jesus está realmente presente no pão e no vinho da Eucaristia” (eu preferiria uma formulação mais exata e detalhada, mas esta cumpre o papel). Se considerarmos que (4) era “Jesus provavelmente está realmente presente no pão e no vinho da Eucaristia”, podemos concluir que apenas (5) representa a fé da Igreja, enquanto as demais respostas ou são heresia pura e simples, ou uma dúvida que jamais deveria existir para um católico bem formado. A má notícia é que apenas 27,6% dos entrevistados escolheram a resposta (5), enquanto os demais 72,4% se dividiram entre as demais respostas, incluindo absurdos 22,1% que responderam (1).
Não há sinal supérfluo na liturgia – mesmo quando esse sinal se tornou opcional segundo as normas litúrgicas atuais. Todos eles têm seu significado e sua função
Lindemann, então, se debruçou sobre o grupo dos que afirmavam ir à missa ao menos uma vez por mês, já que o restante nem saberia avaliar direito se certa prática litúrgica é frequente ou não em sua paróquia. O copo meio cheio: entre esse grupo, a fé na Presença Real sobe para 56,4%. O copo meio vazio: entre esse grupo, a fé na Presença Real é de apenas 56,4%... Mas então a pesquisadora percebeu que as pessoas tendiam a acreditar mais que a Eucaristia é realmente o Corpo e o Sangue de Cristo nas paróquias que oferecem adoração eucarística; que usam a sineta no momento da consagração; e onde as pessoas têm o hábito de fazer a genuflexão e de se ajoelharem. No caso de outras práticas, como o uso de água benta ou de incenso, ou mais momentos de silêncio durante a missa, não foi encontrada correlação com maior ou menor fé eucarística dos entrevistados. Lindemann ainda descobriu que pessoas que haviam ido à missa tridentina ao menos uma vez na vida tendiam a acreditar mais na Presença Real, mas, como o número de frequentadores habituais da missa tridentina entrevistados foi de apenas três, não foi possível tirar maiores conclusões.
Verdadeiros crimes contra a fé dos paroquianos
Eu já fiz esse tipo de estudo (no meu caso, se seminaristas que conheciam as declarações de papas sobre a Teoria da Evolução tendiam a considerá-la verdadeira ou compatível com a doutrina católica), e sei muito bem que correlação não implica causalidade, como bem atesta o clássico artigo “Cegonhas trazem bebês (p=0.008)”, publicado em 2000. Lindemann também sabe disso, por exemplo quando afirma ser possível que pessoas com fé sólida na presença real de Cristo na Eucaristia estejam buscando paróquias onde as práticas litúrgicas são mais reverentes. Por isso, ela sugere mais estudos – uma possibilidade seria avaliar as afirmações dos frequentadores de uma paróquia antes e depois da introdução de práticas e devoções como o uso da sineta e a adoração eucarística, e ver se a fé na Presença Real muda para melhor.
De qualquer forma, e ciente das limitações desse tipo de pesquisa, arrisco dizer que o lex orandi, lex credendi já foi suficientemente comprovado pelo tempo, e é por isso que algumas situações me fazem ferver o sangue. Muitos anos atrás, o bom padre que celebrou a missa em que eu e minha esposa nos casamos foi transferido para uma certa paróquia; seu antecessor ali havia não apenas removido todos os genuflexórios, mas havia parafusado os bancos no piso da igreja! E não foi só isso: ele os parafusou de modo que ficassem muito próximos uns dos outros, tornando o ato de ajoelhar (no chão) um exercício de contorcionismo, ainda que não totalmente impossível. Desparafusar tudo, comprar novos genuflexórios e reformar todo o piso cheio de furos exigia um dinheiro que a paróquia não tinha. Como resultado, quase todos ficavam em pé durante a consagração. E, já que desgraça pouca é bobagem, na paróquia seguinte que ele pegou o falecido antecessor havia trocado os bancos por cadeiras de plástico, iguais às que alugamos quando vamos fazer festinha em casa. Lá também pouquíssima gente se ajoelha.
Em outro caso, uma igreja no litoral catarinense foi ref... deformada de tal jeito que ficou sem as imagens nos nichos entre as portas (é uma dessas igrejas “circulares” com muitas portas) e os bancos tradicionais de igreja foram substituídos por cadeiras parecidas com essas de teatro, com aqueles assentos que se levantam quando ninguém está sentado. Sem genuflexórios, claro, e por isso pouca gente se ajoelhava, mesmo tendo espaço razoável. À época, reclamei com o arcebispo, que me respondeu meio resignado dizendo que não havia muito o que fazer. Há muitos anos não volto lá, não sei como anda o lugar atualmente.
Padre que faz isso comete um verdadeiro crime contra a fé dos paroquianos na Eucaristia, e certamente haverá de responder por isso quando estiver diante de Deus. Até entendo a ausência de bancos em partes de igrejas que também são pontos turísticos muito visitados (como a Basílica de São Pedro, onde a nave principal fica vazia), mas numa paróquia comum? No seu fundamental Introdução ao Espírito da Liturgia, o então cardeal Joseph Ratzinger dizia que “dobrar os joelhos diante da presença do Deus vivo é algo que não podemos abandonar” (estou traduzindo da edição norte-americana). “O homem que aprende a crer também aprende a se ajoelhar, e uma fé ou uma liturgia que já não incorpora o ato de se ajoelhar está doente no seu âmago”, ele continua.
Não há sinal supérfluo na liturgia – mesmo quando esse sinal se tornou opcional segundo as normas litúrgicas atuais. Todos eles têm seu significado e sua função. O padre ou bispo que remove deliberadamente esses elementos está prejudicando a fé do seu rebanho na Eucaristia, está agindo como lobo e não como pastor.
VEJA TAMBÉM:
“Jesus, pode ir para o canto? O Senhor está atrapalhando a visão das pessoas”
Uma outra citação de Ratzinger neste mesmo livro me veio à cabeça quando soube das “novas orientações litúrgicas” implantadas na diocese de Jundiaí (SP) por ordem do bispo, dom Arnaldo Carvalheiro Neto. Apoiado no item 308 da Instrução Geral do Missal Romano (“Haja também sobre o altar ou perto dele uma cruz com a imagem do Cristo crucificado que seja bem visível para o povo reunido. Convém que essa cruz, que serve para recordar aos fiéis a paixão salutar do Senhor, permaneça junto ao altar também fora das celebrações litúrgicas”), o bispo afirmou: “determino que dê preferência à cruz ao lado do altar e não sobre o altar. Caso seja colocada a cruz sobre o altar que ela não seja colocada no centro do altar de modo que a visão dos fiéis não seja prejudicada sobre o que se realiza no altar” (destaque meu).
Ao contrário do que já vi acontecer, com padres e bispos baixando regras que nem são de sua competência (como quando um bispo norte-americano proibiu os padres de celebrar versus Deum, mesmo no rito novo, algo que bispo nenhum pode fazer), no caso da posição da cruz parece-me que o bispo até pode decidir onde ela deve ser colocada. Mas, neste caso, dom Arnaldo decide mal. E aqui recorro novamente ao nosso querido Ratzinger, também no Introdução ao Espírito da Liturgia:
“Nada prejudica mais a liturgia que um ativismo constante, mesmo que seja em nome de uma autêntica renovação. (...) Onde a direção comum ao oriente [Ratzinger está falando do versus Deum] não é possível, a cruz pode servir como um ‘oriente’ interior da fé. Ela devia estar no meio do altar e ser o ponto focal comum para o celebrante e para a comunidade orante. (...) Mover a cruz do altar para um canto, para permitir uma visão desimpedida do padre, é um dos fenômenos mais absurdos das últimas décadas. A cruz atrapalha a missa? O padre é mais importante que o Senhor? Esse erro deveria ser corrigido o quanto antes, e pode ser feito sem nenhum tipo de reconstrução. O Senhor é o ponto de referência. Ele é o sol nascente da história.” (destaque meu).
Nem preciso explicar, certo?