Os lacaios do regime comunista chinês em Hong Kong prenderam (e depois soltaram sob fiança) um nonagenário cardeal na semana passada, “acusado” de estar no conselho de um fundo humanitário que bancava a defesa de ativistas pró-democracia perseguidos por Pequim. O que eu esperaria? Que o cardeal Pietro Parolin ou algum figurão da Secretaria de Estado estivesse voando para a China no instante seguinte para perguntar aos chefões do Partido Comunista “mas que p... é essa?” A realidade? “Espero que esse tipo de iniciativa não complique o caminho, que já é complexo e nada simples, do diálogo” entre Roma e Pequim – palavras do próprio Parolin, para quem a prisão não deveria ser vista como um “repúdio” ao acordo entre Santa Sé e China. Uma declaração tão aguada que levou um colunista da mídia estatal chinesa a afirmar que, no fundo, o Vaticano não estava tão preocupado assim.
Joseph Zen foi nomeado bispo de Hong Kong por São João Paulo II, em 2002, e feito cardeal por Bento XVI, em 2006. Nasceu em Xangai e fugiu para Hong Kong, então sob administração britânica, quando os comunistas tomaram o poder na China. Se alguma liderança católica conhece a fundo a natureza do Partido Comunista Chinês e o que ele é capaz de fazer, é Zen. Apesar disso, como conta John Allen Jr., ele vinha sendo escanteado a ponto de ter ido a Roma e nem ter sido recebido pelo papa Francisco em 2020. Dois anos antes, ele tinha sido um dos principais críticos do acordo assinado entre a Santa Sé e a China, onde os católicos, estimados entre 9 milhões e 12 milhões, estão divididos entre a Associação Católica Patriótica Chinesa, comandada pelo Partido Comunista – seus bispos eram escolhidos pelo governo e ordenados sem mandato papal, embora vários deles viessem pedindo e conseguindo o reconhecimento do Vaticano desde o fim do século passado –, e a Igreja Católica leal a Roma, que funciona clandestinamente. De imediato, o acordo permitiu a reabilitação de sete bispos “coroinhas de Xi Jinping” (© papa Francisco), mas não impediu que Pequim seguisse destruindo igrejas, proibindo peregrinações e prendendo bispos e padres da Igreja clandestina.
Se os líderes da “Igreja estatal” estão conseguindo a bênção do Vaticano enquanto os católicos clandestinos não ganham um milímetro de liberdade religiosa, das duas uma: ou o acordo não é bom, ou alguém não anda fazendo a sua parte
Bem, se os líderes da “Igreja estatal” estão conseguindo a bênção do Vaticano enquanto os católicos clandestinos não ganham um milímetro de liberdade religiosa, das duas uma: ou o acordo não é bom, ou alguém não anda fazendo a sua parte. O cardeal Zen tinha avisado que isso poderia acontecer, e acho muito compreensível que ele tenha subido o tom das suas críticas à diplomacia vaticana ao perceber como os católicos clandestinos ficaram deixados ao Deus-dará depois do acordo. O fato de ter permanecido ao lado desses católicos apenas aumentou sua liderança moral, a ponto de Mark Simon, no Washington Post, ter dito que, depois do Dalai Lama, o cardeal era o líder religioso mais temido por Pequim.
John Allen acha que houve um erro de cálculo dos comunistas, que deveriam ter investido no soft power e deixado Zen quieto, à margem das conversações entre China e Vaticano; em vez disso, quiseram a linha dura e chamaram a atenção para alguém que estava quase fora do jogo (o cardeal Charles Bo, de Mianmar, presidente da Federação Asiática de Conferências Episcopais, não economizou nas críticas à China). O vaticanista acredita até que a prisão do cardeal deve aumentar a pressão para que o Vaticano repense sua “Ostpolitik do século 21”. Aumento de pressão sim, mas mudança concreta? Aqui eu sou mais cético. Afinal, esse acordo é a grande realização do cardeal Parolin na Secretaria de Estado. Quando chegar outubro, o mês em que se decidirá pela renovação ou não do acordo, quem realmente acha que ele recuará e dirá “é, fizemos bobagem em acreditar no Partido Comunista”? Muito provavelmente não fará isso, com cardeal preso e tudo, deixando Pequim ainda mais confiante para seguir aterrorizando os católicos leais a Roma. Pois, no fim das contas, por que a China manda prender um cardeal? Simplesmente porque sente que pode. E, ao ver que a prisão parece despertar mais indignação em políticos ocidentais que na Cúria Romana, só verá esse sentimento confirmado.
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