Uma das unidades da PUC Minas, em Belo Horizonte.| Foto: Raphael Calixto/PUC Minas
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Estava eu tentando não passar ainda mais nervoso com a lista de 20 teses recentes que o Gabriel de Arruda Castro teve o enorme trabalho de ler, e que só chamou de “insólitas” por pura bondade, quando duas delas me chamaram a atenção, menos pelo que defendiam e mais pelo fato de terem sido propostas, apresentadas e aprovadas em uma universidade católica – no caso, a Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas). Uma delas defendia a legalização do aborto; a outra, a legalização das uniões poligâmicas, agora eufemisticamente chamadas de “poliafetividade”.

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Em “O aborto como instrumento de biopolítica”, Ana Maria Meinberg de Moraes repete os clichês habituais dos defensores da legalização, como a afirmação de que leis pró-vida são ferramenta de “poder sobre o corpo feminino” e reduzem a mulher a “cidadã de segundo grau”, a defesa da possibilidade do aborto como expressão da autonomia da mulher sobre o próprio corpo (já o corpo do filho não conta nada), e os chutômetros sobre mortes decorrentes de abortos clandestinos. Em certo momento, ela afirma que a mulher, “ao lhe ser negado o direito ao procedimento seguro do aborto, figura como ser descartável (sacrificável), por necessitar recorrer a meios insalubres e não lhe ser prestado atendimento adequado nos hospitais em decorrência de complicações e, portanto, matável”.

Especificamente no que diz respeito à Igreja Católica, fiquei boquiaberto ao ler todo o trecho sobre “o corpo feminino como fonte do pecado” e ao ver a forma grotescamente caricata como a moral sexual da Igreja foi apresentada. Além disso, percebi uma enorme confusão na tentativa de mostrar como o entendimento da Igreja sobre o momento da animação (a infusão da alma no corpo) teria mudado com o tempo, como se isso de alguma forma legitimasse o aborto aos olhos da Igreja, o que jamais foi verdade, desde os tempos da Didaqué. Este primeiro catecismo, que remonta à época dos apóstolos, não é mencionado na dissertação, como também não o é a Declaração sobre o Aborto Provocado, de 1974, no qual a antiga Congregação para a Doutrina da Fé diz que a discussão sobre o momento exato da animação é independente da valoração moral da Igreja sobre a gravidade do aborto realizado em qualquer estágio da gestação.

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A mestranda (hoje mestre) conclui dizendo que “o aborto é (ou deveria ser) um direito individual da mulher, por se tratar de uma decisão sobre o seu próprio corpo e a sua vida”; que “as pressões dos movimentos pró-vida, dos conservadores, da indústria (do mercado), dos governos, se provam maiores que os direitos das mulheres”; que a ADPF 442 “poderia ser um avanço nos direitos das mulheres, apesar da pressão de grupos religiosos e movimentos pró-vida” – aliás, Ana Maria lamenta que o STF não tenha legalizado o aborto enquanto ela redigia sua dissertação: “Infelizmente, não foi possível discorrer sobre o que tanto se almejava, sobre a conquista do direito das mulheres para optar ou não pelo aborto”, afirma.

Em “Decolonizando afetos: o reconhecimento jurídico das famílias poliafetivas”, Lívia Scopel Ribeiro Dini já chuta a porta logo no resumo, ao dizer que “a legislação civil atual, criada para a tutela do casamento tradicional, cristão, indissolúvel e monogâmico não serve mais” e que a monogamia “foi imposta à sociedade brasileira como parte de um processo de dominação colonial, refletindo a necessidade pelo controle da propriedade privada e manutenção do sistema patriarcal”. A monogamia, aliás, não é apenas uma imposição cultural do branco-europeu-católico; ela seria antinatural, defende a mestranda, recorrendo a conceitos de biologia e antropologia – e à obra de Friedrich Engels (suspiro). A autora defende que “negar o reconhecimento jurídico de família às entidades poliafetivas é, em última instância, negar a função instrumental da família, retirando o foco da dignidade da pessoa humana e retroagindo no tempo”, e que “a monogamia é tão somente a estrutura de um tipo de família, a matrimonial, introduzida no ordenamento pelo colonizador como instrumento de manutenção de seus próprios valores”.

Assim como na outra dissertação, a doutrina da Igreja é grotescamente distorcida. A autora diz que “por muito tempo, o casamento foi hostilizado pela Igreja, por ser visto como uma instituição que permitia a manifestação do desejo e o pecado da carne”, e que “foi com essa ideia de ‘mal menor’ que a Igreja passou a aceitar o casamento como local de procriação. Os adeptos do matrimônio acabaram prevalecendo e a Igreja sacramentalizou o casamento, ainda que com grande dificuldade”. Tratando especialmente das dificuldades dos primeiros missionários na evangelização dos indígenas, a mestranda ainda coloca no catolicismo a culpa pela intolerância religiosa atual: “a crença de que o catolicismo era a única religião legítima e aceitável lança as primeiras sementes da intolerância religiosa no Brasil, que discrimina, persegue e violenta religiões de matrizes africanas e indígenas até os dias atuais”.

Ou seja, duas dissertações de mestrado defendendo pontos de vista diametralmente contrários à doutrina católica foram defendidas em uma universidade que “orienta suas ações, em consonância com o artigo 4º do seu Estatuto, pelos seguintes princípios: Fidelidade aos ensinamentos cristãos e respeito aos princípios da Igreja Católica. (...)”. Alguma coisa aí não vai bem.

Que as mestrandas quisessem defender esse tipo de coisa na PUC Minas é o de menos neste caso, e eu não julgo as intenções delas. Se buscaram a universidade por causa do seu prestígio, se tentaram outros programas de pós-graduação, ou se fizeram a coisa toda de caso pensado, no estilo “vou defender direito ao aborto e atacar a Igreja Católica lá dentro da universidade deles (risada malévola)”, não me interessa. O que me interessa é que, como afirmei semanas atrás por ocasião do discurso abortista de Luís Roberto Barroso na PUC-Rio, jabuti não sobe em árvore. Para que uma ideia contrária à doutrina virasse tema de dissertação, que viria a ser apresentada e aprovada, foi necessário o apoio (ou, no mínimo, a conivência) de muita gente. Gente que deveria estar “orientando suas ações” pela “fidelidade aos valores cristãos e respeito aos princípios da Igreja Católica”.

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A coluna fez dois contatos por e-mail com a PUC-Minas, nos dias 3 e 7, e um contato por telefone no dia 10. A resposta foi a de que “a PUC Minas, em termos institucionais, reserva-se o direito de não emitir comentários” – se mudarem de ideia, atualizo a coluna publicando o posicionamento da universidade.

Mas, pensando aqui, melhor não dizer nada que invocar qualquer tipo de “liberdade acadêmica” ou coisa do tipo. Não que liberdade acadêmica não seja importante. A Igreja não tem medo do debate. Mas deixar que usem a estrutura e o prestígio de uma instituição católica para a defesa explícita de ideias frontalmente contrárias ao que a Igreja defende, com direito inclusive a representações enganosas de sua doutrina, é coisa bem diferente. Se houvessem invocado “liberdade acadêmica” para justificar a existência dessas duas dissertações, eu seria forçado a recordar de imediato uma passagem muito interessante de um dos livros mais sensacionais que já li de C.S.Lewis, O grande divórcio. Mas, se querem saber, vou recordar de qualquer forma porque vale a pena.

É uma passagem que eu até já citei aqui, mas num contexto levemente diferente. O livro é a história de um grupo de condenados ao inferno que têm a chance de visitar o paraíso – e, mais ainda, a chance de ficar lá se quiserem. No entanto (desculpem o spoiler), ninguém fica, apesar da insistência de amigos ou familiares que se salvaram e vão a seu encontro. Em um dos capítulos, um teólogo “liberal” (leia-se herege mesmo) visita o céu e é recebido por um amigo; da conversa entre ambos depreende-se que o tal teólogo chegou a se tornar bispo. Ao convite para que fique no céu, encontre todas as respostas e perceba que sempre esteve errado (alegando-se profundamente com essa descoberta), ele responde que só ficará se tiver direito a “uma atmosfera de investigação irrestrita”, que quer ter “liberdade como pensador” (o grifo é meu). Ao que o outro teólogo, o que está salvo, responde: “O que você há pouco chamou de ‘liberdade’ como pensador não corresponde em nada aos fins para os quais a inteligência foi dada”. E o teólogo-bispo vai-se embora, até porque tem um artigo a apresentar na Sociedade Teológica que funciona lá nas profundezas. Sei que Lewis não é o Catecismo, mas não consigo deixar de imaginar que é isso o que acontece com quem tem mais apego às próprias ideias, à “independência” e à “liberdade” que amor a Cristo e à Igreja, e zelo por seus ensinamentos.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]