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Marcio Antonio Campos

Marcio Antonio Campos

Vaticano, CNBB e Igreja Católica em geral. Coluna atualizada às terças-feiras

Sede vacante

Uma regulamentação para as futuras renúncias papais

O papa Francisco na audiência geral de 10 de agosto de 2022. (Foto: Giuseppe Lami/EFE/EPA)

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Estamos na semana decisiva, segundo a fábrica de boatos vaticanos. No sábado, dia 27, ocorre o consistório em que teremos 21 novos cardeais, dos quais 16 têm idade para participar de um conclave. No dia seguinte, 28, o papa Francisco vai a L’Aquila, onde se venera o corpo de São Celestino V, o papa que renunciou no século 13. Por fim, nos dias 29 e 30, os cardeais se reúnem para estudar a recente reforma da Cúria Romana. Se os rumores estiverem corretos, quando a próxima coluna sair já teríamos um papa demissionário e o início dos preparativos para a escolha do seu sucessor. Semanas atrás expliquei por que não acredito que isso vá ocorrer, e não vi razões recentes para mudar de opinião. Mas não descarto a possibilidade de que algo relevante ocorra nos próximos dias, e que tenha, sim, ligação com uma renúncia papal.

Em julho, o papa deu uma entrevista ao canal mexicano Televisa na qual reafirmou que não tem a intenção de renunciar, mas também disse que era preciso estabelecer regras para o caso de uma nova renúncia papal. E ele tem razão, porque quando Bento XVI anunciou sua decisão surpreendente, em 2013, tudo foi feito de maneira ad hoc: não havia regulamento algum prevendo essa hipótese, e Bento foi estabelecendo seu futuro – o título que usaria, onde residiria, o que faria etc. – da maneira que julgava ser a melhor para a Igreja. Na mesma entrevista, Francisco disse que “a primeira experiência [com Bento XVI] tem corrido bem”, porque o papa emérito é “um homem santo e discreto”. Mas isso não impede que se estabeleça uma regulamentação mais bem pensada para ser aplicada em casos semelhantes no futuro.

Quando Bento XVI renunciou, tudo foi feito de maneira ad hoc: não havia regulamento algum prevendo essa hipótese, e Bento foi estabelecendo seu futuro da maneira que julgava ser a melhor para a Igreja

Duas possíveis mudanças foram antecipadas pelo próprio Francisco na entrevista: caso deixasse o pontificado, ele viveria não no Vaticano, mas no Palácio Apostólico do Latrão, ao lado da Basílica de São João do Latrão (que é, digamos, a “catedral de Roma”). Além disso, ele afirmou preferir o título de “bispo emérito de Roma”, em vez de “papa emérito”, caso renunciasse. Eu, particularmente, também gosto dessa mudança, porque reserva o título de “papa” apenas para aquele homem que está, naquele exato momento, exercendo o poder das chaves. Eu inclusive iria além no sentido de ressaltar o caráter único daquele que governa a Igreja, mantendo para ele a exclusividade da batina branca; o emérito poderia voltar a usar a veste talar preta, apenas com os detalhes (como os botões) em branco, assim como faixa e solidéu brancos também.

Estes, no entanto, são aspectos mais formais, técnicos, chamem como quiserem, ligados ao futuro do papa que renuncia. O que me preocupa mais – e me preocupa desde já – é a possível atuação pública do emérito. E aqui não quero ser mal compreendido: se há alguém neste planeta que faz o mundo se abrir, se iluminar e se esclarecer quando fala, esse alguém não é o Lula, como disse uma vez Marilena Chauí, mas Joseph Ratzinger. Quem me dera ter mais tempo para absorver toda a sua obra. Mas, quando renunciou, Bento XVI disse aos cardeais que desejava “servir de todo o coração, com uma vida consagrada à oração, à Santa Igreja de Deus”. Imaginei que ele se recolheria definitivamente, mas nesses nove anos ele deu entrevistas, publicou artigos... é óbvio que não disse nenhuma bobagem, muito longe disso (e inclusive deixou claro que é a Francisco que devemos obediência), mas não deixa de haver um risco enorme, especialmente para aqueles que pretendem criar divergências ou colocar o papa emérito contra o papa reinante, como se Bento XVI estivesse criticando Francisco nas entrelinhas ou coisa do tipo.

Assim, gostaria que a eventual regulamentação previsse uma atuação muito mais discreta para o papa que renuncia. Mas não é verdade que há bispos eméritos que falam pelos cotovelos? Não tem bispo emérito que age até como “coroinha do Lula” (serei eternamente grato a Francisco por inventar a expressão)? Por que esses eméritos podem seguir falando o que bem entendem, e o “emérito de Roma” precisaria ficar quieto? Justamente por ser alguém que um dia teve o poder máximo dentro da Igreja, e abriu mão dele voluntariamente. A influência que ele tem não é a mesma de um emérito qualquer (e lembro que os bispos são obrigados a renunciar quando fazem 75 anos; um papa só renuncia se quiser), e por isso o estrago à unidade da Igreja pode ser enorme, mesmo que não seja sua intenção. Não digo que o papa precisa virar monge cartuxo ao renunciar. Mas prefiro mesmo que fique mais à margem; que siga participando das cerimônias no Vaticano se quiser, que receba pessoas privadamente, que escreva, mas pensando talvez em uma publicação póstuma.

E isso nos traz de volta ao começo da coluna. Pode ser que nos próximos dias Francisco não renuncie, mas aproveite as duas ocasiões – o consistório e a visita a L’Aquila – para publicar essa regulamentação. Até porque a recente reforma da Cúria também teve efeito sobre uma eventual sede vacante, por exemplo com a extinção da Câmara Apostólica (sobraram só o cardeal camerlengo e o vice-camerlengo, mas o órgão se foi), e será preciso mesmo estabelecer novas regras para preencher o vácuo.

A hipocrisia laicínica de Lula

Já que falamos de Lula, esse amigão do perseguidor de católicos e, agora, encarcerador de bispos Daniel Ortega... em comício no Vale do Anhangabaú, em São Paulo, semana passada, o petista criticou o apoio de religiosos ao seu grande rival em outubro, o presidente Jair Bolsonaro. Disse não precisar de padre e pastor porque “posso me trancar no meu quarto e conversar com Deus quantas horas eu quiser sem pedir favor a ninguém”; que “tem gente que está fazendo da igreja um palanque político”; que “tem muita fake news religiosa correndo por esse mundo”, com “demônio sendo chamado de Deus e tem gente honesta sendo chamada de demônio” (suponho que por “gente honesta” ele esteja se referindo a si próprio, “um homem sem pecado”, como disse em 2005); e que é melhor mesmo não ir à igreja para “não ser obrigado a escutar pessoas contando mentira quando deveria estar cuidando da fé”.

Reparem nessa última afirmação, que resume o laicinismo atual: padre e pastor tem de “estar cuidando da fé”, ou seja, falar apenas do transcendente, do espiritual, sem tocar a realidade “daqui de baixo”, sem uma dimensão pública. É claro que a fé é prioritária, e sem ela a igreja vira ONG, como disse uma vez o papa Francisco. Mas a fé não se descola do resto, ela tem essa dimensão pública – do contrário não existiria Doutrina Social da Igreja, por exemplo. E algo me diz que, para o PT, não é todo padre e pastor que tem de viver nas nuvens e não se meter em política.

O problema de Lula (e da esquerda em geral) não é com religiosos que falam de política, mas com os religiosos que falam de política para não endossar as plataformas petistas, nem para canonizar seu líder maior

Afinal – e para ficar apenas no mundo católico, que é o tema dessa coluna –, não vi Lula reclamar dos padres que se candidatam pelo seu partido e até usam “padre” como nome de urna (nesta eleição achei dois, mas o PT já teve quase que um monopólio desse setor em eleições passadas). Nem reclamou em 2010, quando o então bispo de Caçador, dom Luiz Carlos Eccel, distorceu totalmente um magistral discurso de Bento XVI para, em carta, pedir voto explicitamente a Dilma Rousseff, com frases como “Dilma é a resposta para as nossas inquietações a respeito da vida” e “vamos fazer o nosso Brasil avançar ainda mais, com Dilma, que já provou ser coerente, competente e comprometida com a vida”. Em outras palavras, o problema de Lula (e da esquerda em geral) não é com religiosos que falam de política, mas com os religiosos que falam de política para não endossar as plataformas petistas, nem para canonizar seu líder maior.

Isso quer dizer que padre e bispo pode tietar ou pedir voto para Bolsonaro? Não, nem para ele, nem para ninguém. Mas pode e deve orientar seus fiéis para usar bem o voto; pode e deve lembrá-los de princípios caros à fé católica, como a defesa da vida e da família, a justiça social, o cuidado com o pobre; pode e deve denunciar projetos políticos que violem esses princípios (e que Lula não venha reclamar quando lembrarem sua defesa da legalização do aborto, dizendo que é “fake news religiosa”). Como disse Bento XVI aos bispos do Maranhão em 2010:

“O vosso dever como bispos junto com o vosso clero é mediato, enquanto vos compete contribuir para a purificação da razão e o despertar das forças morais necessárias para a construção de uma sociedade justa e fraterna. Quando, porém, os direitos fundamentais da pessoa ou a salvação das almas o exigirem, os pastores têm o grave dever de emitir um juízo moral, mesmo em matérias políticas. (...) seria totalmente falsa e ilusória qualquer defesa dos direitos humanos políticos, econômicos e sociais que não compreendesse a enérgica defesa do direito à vida desde a concepção até à morte natural (...). Quando os projetos políticos contemplam, aberta ou veladamente, a descriminalização do aborto ou da eutanásia, o ideal democrático – que só é verdadeiramente tal quando reconhece e tutela a dignidade de toda a pessoa humana – é atraiçoado nas suas bases. Portanto, caros Irmãos no episcopado, ao defender a vida ‘não devemos temer a oposição e a impopularidade, recusando qualquer compromisso e ambiguidade que nos conformem com a mentalidade deste mundo’.”

Eis aí o roteiro para ser seguido por padres e bispos nestas próximas semanas.

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