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Queria poder abrir esta última coluna de 2024 com uma ótima notícia que o papa Francisco nos propiciou dias atrás, mas infelizmente a realidade passou na frente mais uma vez. A essa altura, graças a Deus, a uma senadora evangélica da oposição e a um juiz federal de Brasília, a resolução abortista aprovada pelo Conanda no último dia 23 está suspensa. Mas um detalhe da votação não tem como ser ignorado por nenhum católico: o representante da CNBB no Conanda não apareceu para votar – como também não apareceram os representantes da Associação Cristã de Moços e da Inspetoria São João Bosco, ligada à ordem dos salesianos.
O mais estarrecedor, no entanto, foi o que meu colega Renan Ramalho – que acompanhou toda a tramitação da resolução, desde as primeiras tentativas de aprová-la – apurou, com informações de bastidores: que o representante da CNBB estaria disposto a votar favoravelmente à resolução. O que não ficou claro seriam os motivos para sua ausência na reunião do dia 23: se teria havido uma pressão por parte da cúpula da conferência episcopal, para evitar mais um voto em favor do aborto em uma disputa bastante apertada – e, ainda por cima, um voto abortista que levaria o carimbo da entidade que congrega os bispos católicos do Brasil –, ou se o próprio Gallon teria resolvido não participar para não se indispor com os bispos ou algo parecido. A CNBB não se pronunciou oficialmente sobre o caso, nem respondeu ao meu e-mail solicitando informações; além disso, nenhuma das minhas fontes nem confirmou, nem desmentiu a apuração do Renan.
Parece loucura, e é mesmo; por isso mesmo, vamos seguir com cuidado daqui em diante. Os fatos são esses: 1. A resolução foi aprovada no Conanda por 15 votos a 13, indicando que as cinco ausências – além da CNBB, da ACM e dos salesianos, representantes de dois ministérios também não votaram – poderiam ter feito toda a diferença; 2. O conselheiro indicado pela CNBB não apareceu; 3. Esse conselheiro é Elói Gallon, que tem um histórico de atuação na área da infância e adolescência, foi indicado pela CNBB no fim de 2022 e tomou posse no Conanda em fevereiro de 2023; 4. Gallon se filiou ao PT em 1995 e foi candidato a vereador pelo partido em Caxias do Sul (RS) em 2020 – recentemente, a Justiça Eleitoral impôs restrições à consulta de listas de filiação partidária, e a coluna não teve como conferir se ele segue filiado. A coluna também enviou mensagens aos perfis de Gallon no Facebook e no Instagram, sem resposta – o espaço continua aberto caso ele queira se manifestar.
O fato de estarmos em época de festas de fim de ano não pode servir de desculpa para deixar os católicos no escuro a respeito dos detalhes da participação do representante do episcopado brasileiro em uma votação que teve repercussão nacional
Como disse, os fatos são apenas os do parágrafo anterior; por isso, tudo o que escrevo em seguida é especulação. Ainda assim, o certo é que, em nenhum dos casos, a CNBB fica completamente bem na fita.
Se (e é um “se” bem grande) Gallon realmente votaria a favor da resolução e foi dissuadido de comparecer, ponto para a atual gestão da CNBB – que foi eleita em abril de 2023, e portanto não foi a responsável por mandar Gallon para o Conanda. Se (e é um “se” bem grande) Gallon era favorável à resolução e tomou a iniciativa de não ir à reunião para não se expor ou não causar prejuízo à CNBB, isso ao menos revela decência da sua parte, e compreensão de que ele está lá não para fazer a própria vontade, mas para representar a posição da instituição que o indicou.
De qualquer maneira, como jabuti não sobe em árvore, permaneceria o fato de que a gestão anterior da CNBB escolheu para representá-la no conselho uma pessoa cujas credenciais pró-vida não estavam suficientemente comprovadas. Claro que no fim de 2022 os responsáveis por escolher Gallon não poderiam imaginar que dois anos depois o Conanda tentaria votar uma resolução dessas; mas sabiam que vinha por aí um governo abortista até o talo, e que usaria todos os meios disponíveis, incluindo conselhos como o Conanda, para fazer avançar sua agenda. Para se contrapor a isso, qualquer representante da CNBB em qualquer conselho teria de ser um ferrenho pró-vida, mas em vez disso tivemos alguém que supostamente seria favorável a um texto que incentiva a realização de abortos em meninas e jovens grávidas. Isso indica uma falha gravíssima nos processos pelos quais a conferência escolheu seu indicado lá em 2022, e é um alerta para todas as próximas ocasiões em que a CNBB conseguir assento em algum desses conselhos (não será o caso do Conanda para o biênio 2025-26).
Se (e também é um “se” bem grande) Gallon votaria contra a resolução, sua ausência em uma ocasião tão importante e na qual se sabia que cada voto faria diferença é inexplicável, como também é absurda a ausência de um posicionamento público explicando a não participação do conselheiro, já passada uma semana desde que tudo aconteceu. O fato de estarmos em época de festas de fim de ano não pode servir de desculpa para deixar os católicos no escuro a respeito dos detalhes da participação do representante do episcopado brasileiro em uma votação que teve repercussão nacional.
Na luta em defesa da vida, há casos em que as movimentações de bastidores dão resultados melhores, mas em outros casos o posicionamento público é obrigação. Era o caso da votação no Conanda: se as articulações para adiar a sessão ou melhorar o texto falharam, era a hora de a voz dos bispos brasileiros se fazer ouvir na hora do voto. Mas isso não aconteceu, seja lá por que motivo. E essa omissão ajudou a fazer com que a resolução acabasse aprovada. Com a CNBB e mais um ou dois votos, nem teria sido necessário recorrer à Justiça, porque o texto seria rejeitado de uma vez por todas. Que a lição seja aprendida para não precisarmos passar por isso novamente no futuro.
Mártires de Compiègne agora são santas
A novidade com a qual eu queria ter começado essa coluna é o decreto de canonização das 16 carmelitas de Compiègne, guilhotinadas em 17 de julho de 1794 pelos revolucionários franceses. O papa Francisco usou o recurso da “canonização equivalente” ou “equipolente”, que dispensa a comprovação de um milagre atribuído à intercessão do bem-aventurado, e não exige nem mesmo uma cerimônia litúrgica de canonização – nós, brasileiros, devemos nos lembrar de que Francisco canonizou São José de Anchieta dessa mesma forma, que reconhece a devoção sólida e duradoura por parte dos fiéis. Muitos gigantes do catolicismo foram declarados santos dessa forma, incluindo Santos Cirilo e Metódio, São Thomas More e Santo Alberto Magno.
Martírio das carmelitas de Compiègne nos recorda que o endeusamento da Revolução Francesa está bem distante da realidade
Não que alguém precisasse de pretexto para ler os Diálogos das Carmelitas, de Georges Bernanos, ou o romance que inspirou Bernanos (A última ao cadafalso, de Gertrud von le Fort) – ambos os livros descrevem a perseguição movida contra as carmelitas, acrescentando a personagem ficcional Branca de la Force –, ou para assistir ao filme francês de 1960 estrelado por Jeanne Moreau e Alida Valli, baseado no texto de Bernanos. Mas a canonização nos recorda uma verdade frequentemente esquecida: de que o endeusamento da Revolução Francesa está bem distante da realidade. O levante que prometeu “liberdade, igualdade e fraternidade” entregou repressão feroz aos dissidentes e perseguição brutal da religião (especialmente a católica). O regime do Terror acabou dez dias depois do martírio das carmelitas, mas as sementes lançadas pelos revolucionários brotaram na forma de um tipo de laicismo radical que pretende confinar a religião apenas ao espaço privado e permanece firme ainda hoje na própria França, fazendo estrago também em outros países, como o México.
Falando em cristãos vivendo sob regimes brutais...
A editora Thomas Nelson tem uma coleção chamada “Teologia Para Todos”, com curadoria do podcaster e escritor Rodrigo Bibo. São livros voltados para o público evangélico; por isso, ao descobrir que havia um livro chamado A Igreja apoiou Hitler?, fiquei curioso para saber como a Igreja Católica seria retratada ali. Apesar de uma ou outra omissãozinha, o pastor e historiador Willibaldo Ruppenthal Neto fez um trabalho muito bom para ajudar a dissipar mitos toscos, mas ainda bastante prevalentes, sobre o papel da Igreja Católica e, especialmente, do papa Pio XII durante a Segunda Guerra Mundial.
Em vários momentos o autor escapa da armadilha de sermos “engenheiros de obras prontas”, já que hoje é fácil condenar em peso os cristãos que apoiaram Hitler. Ruppenthal expõe o contexto da Alemanha dos anos 20 e 30 do século passado, e mostra como o nazismo se aproveitou de vários fatores, incluindo sua oposição ao comunismo (cujo caráter anticristão já tinha sido fartamente demonstrado), para conquistar a simpatia ou, pelo menos, a tolerância de muitos cristãos alemães, no estilo “o inimigo do meu inimigo é meu amigo”. No caso de Pio XII, Ruppenthal recusa de cara o mito do “papa de Hitler” e mostra que o papa ajudou ativamente a proteger e esconder judeus, recebendo o reconhecimento de lideranças judaicas no pós-guerra e por ocasião de sua morte.
Em livro direcionado ao público evangélico, Willibaldo Ruppenthal Neto fez um trabalho muito bom para ajudar a dissipar mitos toscos, mas ainda bastante prevalentes, sobre o papel da Igreja Católica durante a Segunda Guerra Mundial
No entanto, para um livro que se empenha em mostrar como “o contexto importa”, senti falta de algumas observações. Sim, a Igreja Católica assinou o Tratado do Latrão com Mussolini em 1929, mas teria valido a pena explicar que a Questão Romana se arrastava desde 1870, quando Roma foi capturada durante a Unificação Italiana, que tirou do papa todo o poder temporal – o novo Reino da Itália chegou a oferecer um pequeno território, mas insistia em fazer do papa um súdito do novo país. Sim, foi o católico Franz von Papen quem sugeriu ao presidente Von Hindemburg que nomeasse Hitler como chanceler, mas teria valido a pena explicar que o Partido Nazista já tinha a maior bancada do parlamento alemão (um dos poucos lugares onde Hitler não venceu a eleição de novembro de 1932 fora a Baviera católica), e que a ideia de Von Papen era dar corda a Hitler para se enforcar, e depois recuperar o poder – um plano que deu muito errado.
Sobre a opção de Pio XII pelo silêncio público sobre o Holocausto para não atiçar Hitler, faltou dizer que o papa tinha um caso concreto para embasar sua escolha: o caso da Holanda. Em julho de 1942, os bispos do país ordenaram que em todas as igrejas fosse lida uma carta denunciando as deportações de judeus; em represália, os nazistas intensificaram a caça aos judeus e passaram a perseguir também os judeus convertidos ao catolicismo – a vítima mais famosa dessa repressão foi Santa Teresa Benedita da Cruz, ou Santa Edith Stein, tirada do Carmelo de Echt com a irmã; ambas morreram no campo de extermínio de Birkenau. Por fim, o livro menciona (justificadamente) o papel de Dietrich Bonhoeffer no plano para matar Hitler em julho de 1944, mas ignora completamente que um dos líderes da conspiração, Claus von Stauffenberg, era um católico convicto que buscou em sua fé e no Direito Natural os argumentos para o magnicídio – algo que também foi sumariamente limado do ótimo filme Operação Valquíria.
Mesmo assim, reafirmo o que disse acima: é um livro curtinho, escrito por um evangélico, para evangélicos, e que por isso acaba inevitavelmente deixando coisas de fora e se concentrando mais no papel dos cristãos protestantes que no dos católicos. Um leitor que tenha sido doutrinado na mitologia do “papa de Hitler” encontrará muita informação boa e, se quiser se aprofundar, saberá onde encontrar mais sobre o assunto.