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Não foi só o caso da ação contra a Canção Nova que estourou enquanto eu estava de férias. No comecinho de fevereiro, o padre José Eduardo (sim, aquele mesmo que está sendo perseguido pela polícia política do Alexandre de Moraes) fez uma publicação nos seus perfis que deu o que falar. Reproduzo abaixo:
“O século 21 vomitou um tipo insólito de católico: os sommeliers de Missa. Sem raízes, sem compromisso, vagam feito almas penadas, de paróquia em paróquia, farejando liturgias para depois destilarem seu veneno. Ora as amaldiçoam, ora as exaltam, conforme o sabor do dia ou o capricho de seu ego. Não pertencem a lugar nenhum, não contribuem com nada; servem-se de tudo, mas não servem a ninguém. Tão apegados à tradição, esquecem que a Igreja é territorial, com paróquias e dioceses bem delimitadas; tão ‘medievais’, não têm feudo, são nômades de sacrário, ovelhas desgarradas, desprovidas sem pastor, como Israel perdido no deserto, sem terra, longe de Canaã. Seus frutos? Superficialidade, elitismo e a ilusão de uma santidade que não se planta nem floresce. Que Deus os desperte, antes que se percam de vez, e os faça entender que a Igreja não é uma feira de vaidades, mas a casa de Cristo, onde o amor, e não o conforto, é a moeda de troca.”
E aí tivemos de tudo, gente que veio em defesa do padre, gente que vestiu a carapuça e soltou os cachorros contra o padre, gente que contestou o padre com ponderações mais equilibradas, gente que disse que o padre “se vendeu” a sabe Deus quem...
O ideal é que as pessoas frequentem a missa – e, podendo, envolvam-se em outras atividades – na paróquia onde residem. Mas as pessoas também têm o direito de assistir a missas bem celebradas e nas quais sejam bem formadas
O padre José Eduardo está certíssimo quando diz que a Igreja é territorial. O ideal de fato é que as pessoas frequentem a missa – e, podendo, envolvam-se em outras atividades – na paróquia onde residem. Isso era (e às vezes ainda é) praticamente inevitável em épocas e locais em que havia ou há dificuldades de deslocamento e era ou é quase impossível ir a qualquer outra igreja que não aquela mais próxima de casa. Mas, mesmo onde é fácil ir à missa em outros locais diferentes da paróquia onde se reside, em uma situação igualmente ideal ninguém precisaria ficar pegando ônibus ou carro pra ir a outro bairro todo santo domingo. Bastaria que em todo lugar houvesse liturgia decentemente celebrada e padres pregando a verdade católica.
Aí é que está o problema: hoje, nada disso é garantido. Para quem vive na paróquia do padre José Eduardo está tudo ótimo, lá eles vão encontrar boa liturgia e boas homilias; eu não sei se no restante da diocese de Osasco é assim também. Mas em muitos outros lugares simplesmente não é. Eu tenho tempo de vida suficiente para ter presenciado uma boa dose de liturgias terrivelmente celebradas e sermões tenebrosos; já vi padre defendendo ordenação de mulheres, já vi padre negando milagres narrados no Evangelho (este último eu até questionei depois da missa, e ele me respondeu com umas baboseiras de “Jesus histórico”), já vi padre pulando partes obrigatórias da missa, já vi muita, mas muita música totalmente inapropriada, enfim, se houvesse um bingo com os abusos litúrgicos e heresias em homilia eu já teria fechado a cartela várias vezes. E aposto que muitos leitores já passaram pela mesma situação. E aí?
É verdade que nunca presenciei nada que pudesse tornar uma missa inválida. As palavras da consagração estavam ali, nenhum padre tentou consagrar pão francês e suco de uva, e por aí vai. Mas basta? Somos mesmo obrigados a nos contentar com o mínimo do mínimo, só porque a graça que Deus nos dá por meio da missa está fluindo independentemente da balbúrdia litúrgica ou doutrinal em que está envolvida? Minha resposta é “não”. Temos a obrigação de ir à missa – e ninguém está isento dessa obrigação só porque as únicas missas à disposição são mal celebradas, ou porque não há missa tridentina por perto –, mas temos o direito de assistir a missas bem celebradas e nas quais sejamos bem formados. Podemos tentar melhorar as coisas na nossa paróquia territorial, se houver abertura da parte do padre; mas se não der certo, e se tivermos de buscar missa em paróquia diferente daquela em cujo território residimos, que seja. E creio que isso se aplique especialmente quando somos responsáveis pela formação católica de outros membros da nossa família, como nossos filhos ou um cônjuge recém-convertido.
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Admito que falo um pouco em causa própria, pois acho que ao longo de quase toda minha vida adulta não fui um frequentador assíduo de minha paróquia territorial. Quando morava em São Paulo e não estava visitando meus pais nos fins de semana, ia ao Mosteiro de São Bento. Tendo mudado para Curitiba, conheci o coral gregoriano da Igreja da Ordem, fiz amizade com alguns dos integrantes e com o reitor, o saudosíssimo monsenhor Luiz, e passei a ir à missa dominical lá; apenas às vezes ia à paróquia do bairro, mas o pároco mudou e algumas coisas passaram a nos incomodar muito. Quando chegaram as crianças, procuramos uma igreja maior, onde não fôssemos incomodar muito os demais fiéis com o choro, a birra etc., e achamos uma com um padre bom, depois substituído por outro padre bom (que acabou de ser transferido; ainda não conhecemos o substituto), e continuamos indo lá até hoje. Nesse ínterim, nós nos mudamos, e só botamos os pés na igreja do novo bairro uma vez. Nosso envolvimento em nível de paróquia é sermos instrutores do curso de noivos na paróquia do bairro onde morávamos antes, graças aos vínculos de amizade que mantivemos lá.
Então, se por “sommelier de missa” estivermos falando apenas de alguém que busca sinceramente alimento decente para sua alma, deixando sua paróquia territorial para não ter de presenciar abusos litúrgicos em série ou homilias que atentam contra a fé, acho que o padre José Eduardo exagerou. Mas, lendo a mensagem dele, parece-me que não é bem esse tipo de pessoa que ele está descrevendo. O “sommelier de missa”, se entendi bem, está mais para alguém que criou um “tipo ideal” de missa, que passa a vida toda procurando enquanto despreza (publicamente, inclusive) qualquer coisa que, mesmo lícita, mesmo meritória, não bate com esse ideal. Não tem nada em latim? É violão em vez de canto gregoriano? A letra do Glória está certinha, mas a melodia é meio over? Não citou São Tomás na homilia? Casula gótica em vez de casula romana? Oração Eucarística II em vez do Cânon Romano? Não tem mesa da comunhão (aquela grade que separa a nave do presbitério)? “Ah, então não vou, não ajudo, não contem comigo pra nada”. E dá-lhe textão nas mídias sociais malhando a paróquia e o padre. Se o “sommelier de missa” é essa figura, então o padre José Eduardo está certíssimo, e Deus nos livre desse sujeito assim como do “sommelier de devoção” a quem me referi tempos atrás.








