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Marcio Antonio Campos

Marcio Antonio Campos

Vaticano, CNBB e Igreja Católica em geral. Coluna atualizada às terças-feiras

Livro

A Teologia da Libertação criticada por quem a conheceu bem de perto

O frade Clodovis Boff (em foto de 2021, com outras de suas obras), que ajudou a desenvolver a Teologia da Libertação mas depois tornou-se crítico a ela. (Foto: Lenno Azevedo/Wikimedia Commons/Creative Commons Attribution-Share Alike 4.0 International license)

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Para a maioria dos católicos de fé sólida, ouvir na mesma frase “Boff” e “Teologia da Libertação” dá calafrios, pois de imediato somos levados a pensar em Leonardo Boff e todos os absurdos que ele já defendeu e continua defendendo. Mas existe um outro Boff: seu irmão, Clodovis, frade da Ordem dos Servos de Maria, que de início engrossou as fileiras dos teólogos da libertação, dando-lhe inclusive um estofo metodológico. Tendo percebido os problemas dessa corrente, e que com o tempo eles não se corrigiram, mas apenas se aprofundaram, Clodovis tornou-se crítico da Teologia da Libertação, com um “lugar de fala” (a expressão é horrível, mas já que essa é a única linguagem que alguns entendem...) especial como alguém que foi um expoente desse pensamento.

Ano passado, a editora Ecclesiae lançou o excelente A crise da Igreja Católica e a Teologia da Libertação. Com organização do padre Leandro Adorno, o livro está dividido em três partes: um ensaio inédito, com o mesmo título do livro (o padre Leandro havia pedido algo bem mais modesto, mas o frei Clodovis caprichou na dose); a republicação de uma série de artigos publicados na Revista Eclesiástica Brasileira entre 2007 e 2009, com a crítica de Clodovis, as réplicas de teólogos da libertação, a tréplica do frade servita e mais algumas respostas; e duas entrevistas, concedidas à Folha de S.Paulo, em 2013, e ao site Adital, em 2014. Aqui, vou me concentrar especialmente na primeira parte, mas as outras duas também valem a leitura – o debate na REB mostra como os teólogos da libertação acusaram o golpe, mas no fim se mantiveram agarrados ao erro, como aquele bispo descrito por C.S. Lewis em um dos capítulos de seu genial O grande divórcio.

“A Igreja existe in primis para a evangelização, não para a promoção humana. Sua finalidade específica não é a libertação social e histórica, mas a salvação espiritual e eterna de cada pessoa.”

Clodovis Boff, em “A crise da Igreja Católica e a Teologia da Libertação”

O ensaio inicial faz uma análise certeira sobre as razões da sangria de fiéis que a Igreja vive: a troca da fé no Cristo ressuscitado e do seu anúncio pela mera conformação às demandas do mundo moderno. É um fenômeno que, explica Clodovis, não é único da América Latina nem da Teologia da Libertação: suas raízes, aliás, estão na Europa, especialmente no pensamento do jesuíta alemão Karl Rahner e sua ideia de “cristianismo anônimo”, pela qual para ser cristão não é preciso confessar explicitamente a fé em Cristo e buscar fazer discípulos, mas simplesmente ter uma conduta ética correta (ou seja, é algo diferente daquilo que a Igreja entende por “batismo de desejo”), o que, levado às últimas consequências, torna dispensáveis a graça, os sacramentos e a própria Igreja. O problema é que, sem Deus ou mesmo a lei natural como referência, o “eticamente correto” flutua ao sabor do vento, e assim temos, por exemplo, os bispos europeus abraçando com gosto todo o cânon ético atual em questões morais e de gênero. Já na América Latina, esse pensamento se voltou para a “consciência social” em relação aos pobres.

E aí está o grande erro da Teologia da Libertação: colocou o pobre como fim último no lugar de Cristo, que passa a aparecer na boca dos teólogos meio que como Pilatos no Credo: um acessório conveniente para calar críticos, mas longe de estar no centro da vida desses cristãos. O resultado é óbvio: quando a Igreja deixa de ter como objetivo principal a salvação das almas, substituída pela “libertação” sociopolítica do pobre (o que quer que isso signifique), os padres e bispos deixam de ser pastores para se tornarem ativistas sociais; momentos fortes do calendário católico, como a Quaresma, são subvertidos por iniciativas como a Campanha da Fraternidade; a devoção e a religiosidade popular são sufocadas; a fé vira ideologia; e a própria Igreja já não é mais o Corpo Místico de Cristo, restando-lhe ser uma ONG como qualquer outra. Grande, com muita capilaridade e influência, sem dúvida, mas nada diferente de todas as outras ONGs em sua natureza.

E como fica a pessoa que está atrás das palavras de vida eterna que só Cristo (e, consequentemente, sua Igreja) tem a oferecer, e em vez disso encontra apenas discurso político? Essa Igreja mundanizada nada tem a dizer a essa pessoa, que vai saciar sua sede de espiritualidade em outro lugar – e o que mais temos nesse início de século 21 são pessoas atrás de um sentido para suas vidas. Por isso tanto se repete que “a Igreja fez a opção preferencial pelos pobres, e os pobres fizeram a opção preferencial pelos evangélicos” (ou, na Europa, pelos muçulmanos). “A Igreja declina porque a fé declina”, resume Clodovis Boff. E, se é assim, não há outra saída a não ser o reavivamento daquilo que torna a Igreja única: fé profunda, oração profunda, evangelização profunda. “Enganam-se os que pensam ‘salvar a Igreja’ com mais engajamento social (e agora também ecológico) (...) É igualmente enganoso esperar um despertar da Igreja apostando nas reformas internas, como a admissão de padres casados, de mulheres padres, da bênção para pares homossexuais, da comunhão para os recasados e do poder decisório para os leigos. (...) a retomada do crescimento da Igreja está, para nós, em voltar ao seu centro vivo, ao seu coração pulsante, à sua essência: o Cristo de Deus”, diz Boff (p. 45-47). Afinal, “a Igreja existe in primis para a evangelização, não para a promoção humana. Sua finalidade específica não é a libertação social e histórica, mas a salvação espiritual e eterna de cada pessoa”. (p. 52).

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E é por isso que, para frei Clodovis, quem vai ajudar a salvar a Igreja são as velhinhas do Apostolado da Oração, os contemplativos, “os novos movimentos de espiritualidade e evangelização”, a “multidão dos fiéis do catolicismo popular”, ou os carismáticos. “Ainda que essas forças não constituam a pars maior da Igreja, parecem ser ou vir a ser sua pars melior graças à sua eclesialidade assumida e à sua dinâmica missionária”, diz o teólogo. E não só isso: são católicos que jamais se descuidaram do cuidado com o pobre, em obediência ao mandato evangélico. Afinal, ninguém está propondo nem defendendo um catolicismo “desencarnado”, insensível à grande chaga social latino-americana que é a pobreza; a diferença é que, ao contrário dos teólogos da libertação, esses católicos sabem muito bem hierarquizar o urgente e o importante, sem inverter as coisas. Se a Igreja brasileira e latino-americana voltar a colocar Cristo no centro, o cuidado com os pobres virá naturalmente, como aliás a Igreja tem feito – e feito bem – desde os seus primórdios. Foi gente de fé que criou todo o arcabouço de assistência social que daria origem aos sistemas modernos de saúde e educação, por exemplo.

Agora, compare tudo isso com aquela absurda “Análise de Conjuntura Eclesial” que todo o episcopado brasileiro recebeu em abril do ano passado, segundo a qual o grande problema da Igreja brasileira era o “discurso neotradicionalista” de influencers católicos e as “leituras fundamentalistas” que embasavam o discurso de defesa da vida e da família. Aquela mesma análise que pedia acompanhamento e, se necessário, correção (CORREÇÃO, Deus meu!) da religiosidade popular. O livro de Clodovis Boff vale por um milhão dessas análises toscas. Era ele que deveria estar na mesa de cada bispo desse país, em vez de um texto que transpira ojeriza ao que é verdadeiramente religioso e cujos autores acham que tudo se resolve com mais “consciência social”. Pois “consciência social” até o Baiano de Tropa de Elite tinha, não?

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