Muita gente boa está indignada com a nova portaria do governo Lula, assinada pelo ministro Luiz Marinho, que dificulta o trabalho de vários setores aos domingos e feriados, revogando uma normativa anterior da época de Jair Bolsonaro. E há uma série de bons motivos para essa indignação: a nova portaria mais uma vez demonstra que Lula governa para os sindicatos, e não para o trabalhador; a regulamentação não chegou a ser discutida com as empresas do setor, e ainda por cima foi implantada com efeito imediato justamente na véspera de um feriado, bagunçando o planejamento de inúmeros estabelecimentos. Mas Lula e Marinho, apesar de todas as suas reais intenções (que eu de antemão pressuponho nunca serem as melhores), podem ter atirado no que viram e acertado no que não viram. Falo da banalização do domingo como um dia de trabalho igual a qualquer outro.
Acontece que, para os cristãos, o domingo não é um dia qualquer: é o dia dedicado a Deus e ao culto divino, e mesmo sociedades já bastante secularizadas mantêm este traço herdado da cultura cristã, fazendo do domingo o dia por excelência do repouso semanal. É óbvio que não se trata de abster-se de toda e qualquer atividade, como fazem por exemplo alguns setores do judaísmo ortodoxo; o fato de o domingo ser o Dia do Senhor não exclui outros tipos de atividade – há muitos para quem o trabalho manual, por exemplo, acaba sendo um tipo de lazer. A Igreja, inclusive, reconhece que há profissões cuja natureza não permite uma interrupção total no domingo; pensemos, por exemplo, no setor de saúde, ou mesmo em outras atividades em circunstâncias específicas, como em regiões turísticas, onde a chance do ganha-pão do comércio e do setor de serviços está justamente nos fins de semana.
Na verdade, os critérios que a doutrina católica estabelece são bastante simples: o trabalho aos domingos não pode, de forma alguma, impedir a pessoa de participar do culto divino, e não deve ser imposto desnecessariamente. Mas mesmo essas diretrizes simples já estão sob ataque em nosso mundo secularizado. É ou não é verdade que muitos de nós fazemos questão do descanso aos domingos, mas esperamos que todos os demais estejam a postos para nos servir? E uso aqui o “nós” não como figura retórica, porque só Deus sabe quantas vezes já fui ao supermercado aos domingos para comprar coisas que poderiam esperar até segunda, só porque no domingo eu “tinha mais tempo livre”.
Os critérios que a doutrina católica estabelece são bastante simples: o trabalho aos domingos não pode, de forma alguma, impedir a pessoa de participar do culto divino, e não deve ser imposto desnecessariamente
Trago aqui duas citações longas, mas muito esclarecedoras. A primeira é do Catecismo:
“2184. Tal como Deus ‘repousou no sétimo dia, depois de todo o trabalho que realizara’ (Gn 2, 2), assim a vida humana é ritmada pelo trabalho e pelo repouso. A instituição do Dia do Senhor contribui para que todos gozem do tempo de descanso e lazer suficiente, que lhes permita cultivar a vida familiar, cultural, social e religiosa.
2185. Aos domingos e outros dias festivos de preceito, os fiéis abstenham-se de trabalhos e negócios que impeçam o culto devido a Deus, a alegria própria do Dia do Senhor, a prática das obras de misericórdia ou o devido repouso do espírito e do corpo. As necessidades familiares ou uma grande utilidade social constituem justificações legítimas em relação ao preceito do descanso dominical. Mas os fiéis estarão atentos a que legítimas desculpas não introduzam hábitos prejudiciais à religião, à vida de família e à saúde. ‘O amor da verdade procura o ócio santo: a necessidade do amor aceita o negócio justo’.
2186. Os cristãos que dispõem de tempos livres lembrem-se dos seus irmãos que têm as mesmas necessidades e os mesmos direitos, e não podem descansar por motivos de pobreza e de miséria. O domingo é tradicionalmente consagrado, pela piedade cristã, às boas obras e aos serviços humildes dos doentes, enfermos e pessoas de idade. Os cristãos também santificarão o domingo prestando à sua família e vizinhos tempo e cuidados difíceis de prestar nos outros dias da semana. O domingo é um tempo de reflexão, de silêncio, de cultura e de meditação, que favorecem o crescimento da vida interior e cristã.
2187. Santificar os domingos e festas de guarda exige um esforço comum. Todo cristão deve evitar impor a outrem, sem necessidade, o que possa impedi-lo de guardar o Dia do Senhor. Quando os costumes (desporto, restaurantes etc.) e as obrigações sociais (serviços públicos etc.) reclamam de alguns um trabalho dominical, cada um fica com a responsabilidade de um tempo suficiente de descanso. Os fiéis estarão atentos, com moderação e caridade, para evitar os excessos e violências originados às vezes nas diversões de massa. Não obstante as pressões de ordem econômica, os poderes públicos preocupar-se-ão em assegurar aos cidadãos um tempo destinado ao repouso e ao culto divino. Os patrões têm obrigação análoga para com os seus empregados.
2188. No respeito pela liberdade religiosa e pelo bem comum de todos, os cristãos devem esforçar-se pelo reconhecimento dos domingos e dias santos da Igreja como dias feriados legais. Devem dar a todos o exemplo público de oração, respeito e alegria, e defender as suas tradições como uma contribuição preciosa para a vida espiritual da sociedade humana. Se a legislação do país ou outras razões obrigarem a trabalhar ao domingo, que este dia seja vivido, no entanto, como sendo o dia da nossa libertação, que nos faz participantes da ‘reunião festiva’, da ‘assembleia de primogênitos inscritos nos céus’ (Heb 12, 22-23).”
A segunda, da carta Dies Domini, de São João Paulo II, de 1998:
“65. (...) a ligação entre o dia do Senhor e o dia do descanso na sociedade civil tem uma importância e um significado que ultrapassam o horizonte propriamente cristão. De facto, a alternância de trabalho e descanso, inscrita na natureza humana, foi querida pelo próprio Deus, como se deduz da perícopa da criação no livro do Gênesis (cf. 2,2-3; Ex 20,8-11): o repouso é coisa ‘sagrada’, constituindo a condição necessária para o homem se subtrair ao ciclo, por vezes excessivamente absorvente, dos afazeres terrenos e retomar consciência de que tudo é obra de Deus. O poder sobre a criação, que Deus concede ao homem, é tão prodigioso que este corre o risco de esquecer-se que Deus é o Criador, de quem tudo depende. Este reconhecimento é ainda mais urgente na nossa época, porque a ciência e a técnica aumentaram incrivelmente o poder que o homem exerce através do seu trabalho.
66. Por último, importa não perder de vista que o trabalho é, ainda no nosso tempo, uma dura escravidão para muitos, seja por causa das condições miseráveis em que é efetuado e dos horários impostos, especialmente nas regiões mais pobres do mundo, seja por subsistirem, mesmo nas sociedades economicamente mais desenvolvidas, demasiados casos de injustiça e exploração do homem pelo homem. Quando a Igreja, ao longo dos séculos, legislou sobre o descanso dominical, teve em consideração sobretudo o trabalho dos criados e dos operários, certamente não porque este fosse um trabalho menos digno relativamente às exigências espirituais da prática dominical, mas sobretudo porque mais carente duma regulamentação que aliviasse o seu peso e permitisse a todos santificarem o dia do Senhor. Nesta linha, o meu venerado predecessor Leão XIII, na encíclica Rerum novarum, apontava o descanso festivo como um direito do trabalhador, que o Estado deve garantir.
E, no contexto histórico atual, permanece a obrigação de batalhar para que todos possam conhecer a liberdade, o descanso e o relaxe necessários à sua dignidade de homens, com as conexas exigências religiosas, familiares, culturais, interpessoais, que dificilmente podem ser satisfeitas se não ficar salvaguardado pelo menos um dia semanal para gozarem juntos da possibilidade de repousar e fazer festa. Obviamente, este direito do trabalhador ao descanso pressupõe o seu direito ao trabalho, pelo que, ao refletirmos sobre esta problemática ligada à concepção cristã do domingo, não podemos deixar de recordar, com sentida solidariedade, a situação penosa de tantos homens e mulheres que, por falta dum emprego, se veem constrangidos à inatividade mesmo nos dias laborativos.
O que seria de uma família em que pai e mãe tivessem sempre dias de folga diferentes, sem poderem aproveitar juntos o descanso semanal? Esta seria a consequência natural da transformação do domingo em um dia de trabalho como qualquer outro
67. Graças ao descanso dominical, as preocupações e afazeres quotidianos podem reencontrar a sua justa dimensão: as coisas materiais, pelas quais nos afadigamos, dão lugar aos valores do espírito; as pessoas com quem vivemos recuperam, no encontro e diálogo mais tranquilo, a sua verdadeira fisionomia. As próprias belezas da natureza – frequentemente malbaratadas por uma lógica de domínio, que se volta contra o homem – podem ser profundamente descobertas e apreciadas. Assim o domingo, dia de paz do homem com Deus, consigo mesmo e com os seus semelhantes, torna-se também ocasião em que o homem é convidado a lançar um olhar regenerado sobre as maravilhas da natureza, deixando-se envolver por aquela estupenda e misteriosa harmonia que, como diz S. Ambrósio, por uma ‘lei inviolável de concórdia e de amor’, une os diversos elementos do universo num ‘vínculo de união e de paz’. Então, o homem torna-se mais consciente, segundo as palavras do Apóstolo, de que ‘tudo o que Deus criou é bom, e não é para desprezar, contanto que se tome em ação de graças, pois é santificado pela palavra de Deus e pela oração’ (1 Tim 4,4-5). Portanto, se depois de seis dias de trabalho – para muitos, na verdade, reduzidos já a cinco – o homem procura um tempo para relaxe e para cuidar melhor dos outros aspectos da própria vida, isso corresponde a uma real necessidade, em plena harmonia com a perspectiva da mensagem evangélica. Consequentemente, o crente é chamado a satisfazer esta exigência, harmonizando-a com as expressões da sua fé pessoal e comunitária, manifestada na celebração e santificação do dia do Senhor.
Por isso, é natural que os cristãos se esforcem para que, também nas circunstâncias específicas do nosso tempo, a legislação civil tenha em conta o seu dever de santificar o domingo. Em todo o caso, têm a obrigação de consciência de organizar o descanso dominical de forma que lhes seja possível participar na Eucaristia, abstendo-se dos trabalhos e negócios incompatíveis com a santificação do dia do Senhor, com a sua alegria própria e com o necessário repouso do espírito e do corpo.”
Reparem em um detalhe do ponto 66, quando o papa fala de “gozarem juntos da possibilidade de repousar e fazer festa” (e o destaque é do próprio papa). Mesmo quando estamos falando de não cristãos, ou de cristãos que não se preocupam em ir à igreja ou realizar algum tipo de atividade espiritual, o domingo é importante como o dia comum do descanso e de estar juntos. O que seria de uma família em que pai e mãe tivessem sempre dias de folga diferentes, sem a possibilidade de poderem aproveitar juntos o descanso semanal? Esta seria a consequência natural da transformação do domingo em um dia de trabalho como qualquer outro.
E é nisso que precisam pensar os parlamentares de direita, incluindo muitos cristãos, que estão se articulando para derrubar a portaria do Ministério do Trabalho e retomar a regra antiga, que exigia apenas o entendimento entre patrões e empregados para permitir o trabalho aos domingos. A normativa lulista é ruim, mas a anterior também permite uma série de abusos que, em nome da liberdade econômica, banalizam o domingo e tiram dele seu caráter especial dentre os dias da semana. Nosso Deus não é o livre mercado.
Eleição argentina não é referendo sobre Francisco
Felizmente o meu amigo Polzonoff não é bom de previsão e Javier Milei será o novo presidente da Argentina. Como o libertário já andou falando poucas e boas do papa Francisco, alguns analistas do lado religioso fizeram questão de lembrar disso. No Crux, a manchete enquanto escrevo é o texto de Eduardo Campos Lima dizendo que o resultado, “em certo sentido, equivale a um referendo sobre a agenda política e social do papa Francisco em seu país natal”. O blog tradicionalista Rorate Coeli vai ainda mais longe na relação de causa e efeito. “Milei disse que o papa Francisco ‘tem uma afinidade por comunistas assassinos’ e o acusou de violar os Dez Mandamentos. Alguns no Ocidente imaginaram que esses comentários prejudicariam Milei na Argentina, terra de Francisco. Em vez disso, a crítica agressiva de Milei ao papa Francisco o levou a uma vitória surpreendente”.
Milei xingou o papa Francisco? Com certeza, e as bobagens que disse vão muito além do que seria uma crítica filial a atitudes do papa. Mas, num país com quase 150% de inflação anual e 40% da população na pobreza, achar que o eleitor de Milei está sendo guiado pela opinião do candidato sobre o papa me parece um tremendo exagero, e dizer que a retórica anti-Francisco de Milei o levou à vitória é ainda mais delirante. Foi uma eleição decidida em cima da economia, não do que se disse ou deixou de dizer sobre Francisco.
A matéria do Crux, no entanto, me chamou a atenção menos por essa tentativa de exagerar o “fator Francisco” que pela reação dos curas villeros à vitória de Milei. Alguns ali estão se portando como verdadeiros “coroinhas de Perón”, como aqui temos os “coroinhas de Lula”: até comparações com a ditadura militar argentina – muito mais cruel que a brasileira, aliás – já surgiram. Mas absurdo mesmo foi o que um desses padres, Francisco Olivera, afirmou poucas horas depois do anúncio do resultado eleitoral: “Vou dizer algo às pessoas que servimos. Aos que votaram em Milei, por favor sejam coerentes e não venham mais ao refeitório. Não haverá comida para todos”.
Este sacerdote não é nada diferente do boçal brasileiro que promete não dar esmola ou emprego a quem tenha votado no Lula. O que ele está dizendo, no fim das contas, é que pobre bom é o pobre que vota na esquerda, que seu amor ao Cristo presente no mais necessitado está sujeito a certas condições. O que todos esses esquecem é que, domingo que vem, iremos ouvir o fim do capítulo 25 do Evangelho de São Mateus, em que Cristo fala do Juízo Final e da separação entre bons e maus, colocando entre os bons também aqueles que praticaram as boas obras incondicionalmente, sem saber que o faziam a Jesus. Ele diz apenas “tive fome e me destes de comer”, não “tive fome e, como votei em Fulano, me destes de comer”. E, aos condenados, dirá simplesmente que “tive fome e não me destes de comer (...) Todas as vezes que não fizestes isso a um desses pequeninos, foi a mim que não o fizestes”. A preferência política do pobre não servirá de desculpa para ninguém ter deixado de fazer o que deve ser feito, mas muita gente só vai perceber isso quando for tarde demais.
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