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Com a velocidade de um Eric Moussambani, o Vaticano se pronunciou sobre a ofensa aos cristãos cometida na cerimônia de abertura nos Jogos Olímpicos de 2024. Mas o fez de uma forma muito esquisita: em um comunicado curtinho, em francês, sem tradução para nenhum outro idioma; sem a assinatura de ninguém, nem menção a nenhum dicastério específico (o Dicastério para a Cultura é o responsável pela Athletica Vaticana e pela interlocução da Santa Sé com o mundo do esporte, mas não foi mencionado); e num sábado à noite.
“A Santa Sé ficou entristecida com algumas cenas da cerimônia de abertura dos Jogos Olímpicos de Paris”, diz o comunicado, acrescentando que o Vaticano “junta-se às vozes que se levantaram nos últimos dias para deplorar a ofensa cometida a muitos cristãos e crentes de outras religiões”. Afirma que “em um evento de prestígio, no qual o mundo inteiro se reúne em torno de valores comuns, não deveria haver alusões que ridicularizassem as crenças religiosas de muitas pessoas”, e conclui dizendo que “a liberdade de expressão, que obviamente não está em discussão, encontra o seu limite no respeito pelos outros”.
Bom, antes tarde do que nunca.
Em outros tempos, talvez isso não fosse necessário. Os bispos franceses se pronunciaram sobre a paródia da Última Ceia quase que imediatamente. Em um espírito de subsidiariedade, se a instância “inferior”, digamos, que são os bispos locais, já interferiram, não seria necessário que a instância “superior” (o Vaticano ou o papa Francisco) interferisse. Acontece que, por outro lado, temos um pontífice que fala muito, e sobre muita coisa. E aí, calar sobre algo dessa dimensão fica mesmo um tanto contraditório. Tanto que, no Crux, o vaticanista John Allen Jr. afirma que vários bispos procuraram o Vaticano para reclamar que o silêncio do papa estava desautorizando ou desmoralizando as reclamações dos católicos diante dos defensores da palhaçada olímpica.
As circunstâncias do comunicado vaticano foram muito estranhas, especialmente o fato de ter vindo muitos dias depois da abertura dos Jogos Olímpicos e ter saído em um dia e horário incomuns
As possíveis razões para o silêncio papal
Na mesma coluna no Crux em que Allen mencionou o incômodo que o silêncio papal causava entre os bispos que criticaram a cerimônia, e ressaltou as peculiaridades do breve comunicado – especialmente o seu timing –, ele analisa alguns dos possíveis motivos pelos quais o Vaticano evitou se meter na controvérsia em primeiro lugar. Citando um site bastante simpático a Francisco, o jornalista levanta a possibilidade de o papa ter julgado que a cerimônia de abertura não era motivo suficiente para se comprar uma briga com a França, especialmente depois que o país acaba de colocar na sua Constituição um “direito ao aborto”, e com a extrema esquerda sendo o bloco mais votado nas últimas eleições parlamentares e tendo o direito de nomear um novo primeiro-ministro – embora, para mim, esses fossem motivos para o papa ser mais, não menos loquaz sobre a França.
Além disso, continua Allen, poderia ter pesado na postura inicial de silêncio o fato de uma condenação colocar Francisco ao lado de figuras “incômodas” – o jornalista cita especificamente o agora excomungado arcebispo Carlo Maria Viganò, mas a crítica à cerimônia de abertura foi feita também por figuras políticas, como a francesa Marine Le Pen, por quem o papa não nutre a menor simpatia.
Como um autocrata muçulmano pode ter destravado a língua do Vaticano
O veterano jornalista diz acreditar que foi o autocrata turco, Recep Tayyip Erdoğan, o responsável por finalmente levar o Vaticano a se pronunciar. Na terça-feira passada, Erdoğan disse a membros de seu partido que entraria em contato com o papa na primeira oportunidade para pedir-lhe que condenasse a blasfêmia na abertura dos Jogos Olímpicos (a figura de Jesus Cristo também é importante para os muçulmanos, que o veem como um profeta); dois dias depois, na quinta-feira, ele disse ter feito o telefonema, algo que o Vaticano não condenou nem desmentiu.
Allen recorda que Francisco é notoriamente avesso a que lhe digam o que fazer – e, aqui, uma digressão: aparentemente isso estaria por trás da decisão papal, divulgada por sites tradicionalistas, de não publicar nenhuma nova restrição à missa tridentina; o cardeal Arthur Roche (ou o arcebispo Vittorio Viola, secretário do Dicastério para o Culto Divino) teria insistido tanto que o papa se cansou da pressão. E, então, o jornalista se pergunta: se é assim, como foi que Erdoğan conseguiu? O vaticanista tem suas hipóteses.
Uma delas seria a escolha por não deixar Erdoğan no vácuo, já que ele tinha anunciado aos quatro ventos que havia ligado para o papa. Não melindrar o turco, e nem os muçulmanos, seria uma forma de manter o Vaticano na lista de possíveis mediadores no conflito entre Israel e os terroristas do Hamas em Gaza – que também foi assunto da tal conversa telefônica. Mesmo sem o componente geopolítico, Allen acredita que um sinal de boa vontade em relação aos islâmicos seria condizente com a orientação que Francisco dá ao seu papado.
Claro, são hipóteses, que só não chamo de “meras hipóteses” porque foram levantadas por alguém que conhece os meandros do Vaticano há décadas. De qualquer modo, admito que ficaria um tanto decepcionado se qualquer das possibilidades levantadas por Allen fosse real, pois a única boa razão para o papa não se envolver seria o fato de os bispos franceses já o terem feito. Todas as outras circunstâncias – as considerações geopolíticas, os “companheiros indesejáveis”, a solidariedade aos muçulmanos ofendidos – são secundárias diante do que aconteceu em Paris, e que horrorizou centenas de milhões de católicos em primeiríssimo lugar. Como o único que sabe com 100% de certeza por que razão o papa Francisco primeiro calou e depois se pronunciou (ainda que brevemente, ainda que por meio de uma nota quase anônima) é o próprio Francisco, espero que ele tenha realmente se guiado pelas melhores razões.