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Em maio deste ano, quase 20 mil peregrinos caminharam de Paris a Chartres, em um evento que ocorre anualmente. A maioria deles é de jovens tradicionalistas – os católicos que preferem a missa segundo os livros litúrgicos de 1962, anteriores à reforma litúrgica de 1969 –, e a peregrinação sempre termina com a celebração da missa neste rito, na catedral de Chartres; este ano, o celebrante foi o cardeal alemão Gerhard Müller, prefeito emérito do Dicastério para a Doutrina da Fé. Uma outra peregrinação semelhante, no entanto, não terá a mesma sorte.
A Arquidiocese de Oviedo, na Espanha, comunicou que os peregrinos de Nossa Senhora da Cristandade não poderão terminar sua caminhada com a celebração da missa tridentina na Basílica de Santa Maria Real de Covadonga, como haviam feito nos últimos anos. A organização avisou os participantes da peregrinação que, em vez da missa no santuário, será celebrada missa campal antes do último trecho de caminhada; dentro da basílica será cantado o Te Deum e haverá adoração ao Santíssimo Sacramento. O detalhe (sórdido): a proibição da missa não foi decisão da arquidiocese, mas veio diretamente do Dicastério para o Culto Divino, em Roma, comandado pelo cardeal Arthur Roche.
O bispo é o guardião da tradição, pero no mucho
Como afirmei na semana passada, considero Traditionis custodes um dos documentos mais complicados do pontificado de Francisco. Para começar, ele é contraditório: diz que os bispos, “em comunhão com o bispo de Roma”, são os “guardiões da tradição”. Mas, ao mesmo tempo que afirma isso, retira dos bispos quase toda a autonomia quando se trata de guardar a tradição litúrgica do uso do missal de 1962. O bispo, melhor que ninguém, conhece seu rebanho e seus padres. Ele sabe se existe uma comunidade de fiéis tradicionalistas em sua diocese; sabe se essa comunidade é grande, se é vibrante, se coopera com as iniciativas da diocese. E, supondo que seja assim, que não se trate de católicos com espírito divisivo ou arrogante, que o bispo queira ajudá-los: o bispo pode escolher uma paróquia existente ou criar uma paróquia pessoal para eles? Não pode, Traditionis custodes não deixa. Se um seminarista demonstra interesse em celebrar a missa tridentina, o bispo pode permitir que ele o faça depois de ordenado? Não pode, Traditionis custodes manda que o bispo consulte o Vaticano. Nem mesmo o bispo pode celebrar a missa tridentina como desejar: o arcebispo de Melbourne (Austrália), Peter Comensoli, pediu autorização ao Dicastério para o Culto Divino para celebrar na sua catedral, e recebeu um “não”.
Ao mesmo tempo em que Traditionis custodes diz que os bispos são “guardiões da tradição”, retira-lhes quase toda a autonomia quando se trata de guardar a tradição litúrgica do uso do missal de 1962
Enfim, se Francisco tivesse retornado ao status da época de São João Paulo II, que simplesmente delegava aos bispos o poder de decidir se e como a missa tridentina seria celebrada em cada diocese, a expressão inicial de Traditionis custodes faria mais sentido. Mas o que o motu proprio de Francisco fez foi impor restrições ainda maiores. E há uma boataria forte afirmando que há mais por vir.
O site tradicionalista Rorate Coeli afirmou, em meados de junho, que o Vaticano preparava um novo documento, banindo de vez a missa tridentina ou, na menos pior das hipóteses, confinando-a a grupos específicos como o Instituto Cristo Rei, a Fraternidade de São Pedro e a Administração Apostólica São João Maria Vianney, aqui no Brasil. As fontes do Rorate Coeli são as mesmas que anteciparam ao site a existência de uma sondagem enviada a bispos sobre a aplicação de Summorum Pontificum (o motu proprio de Bento XVI que liberou a celebração da missa tridentina sem necessidade de autorização episcopal) e sobre a preparação do que viria a ser Traditionis custodes, ou seja, têm um histórico de informação quente. Até o momento, no entanto, não aconteceu nada – fontes do Vaticano chegaram a dizer ao jornal católico francês La Croix que os rumores eram infundados.
A primeira pergunta que se faz, diante dessa possibilidade, é um “pode isso, Arnaldo?” Já vi bons argumentos de ambos os lados, e minha tendência (de quem é totalmente leigo em termos de teologia sacramental e Direito Canônico) é achar que sim, Francisco poderia fazer isso. Ele não estaria abolindo a missa (isso, sim, seria impossível); estaria apenas determinando que o Ordo de 1969 seria a única forma de celebrar o Santo Sacrifício na Igreja latina. Mas, mesmo achando que um papa – Francisco ou qualquer outro – possa fazer isso com a missa tridentina, não acho que deva fazer isso, muito pelo contrário.
Um depoimento pessoal
Assisti à missa tridentina por muitos anos, e tive a graça de conhecer um sacerdote muito santo, monsenhor Luiz de Gonzaga Gonçalves, aqui em Curitiba. No curto intervalo entre a publicação de Summorum pontificum e sua entrada em vigor, em 2007, monsenhor Luiz pediu ao arcebispo, dom Moacyr Vitti, autorização para já começar a celebrar pelo missal de 1962. E celebrou todo domingo, até sua saúde deteriorar-se de vez. Minha esposa e eu frequentamos as missas tridentinas com canto gregoriano na Igreja da Ordem até nascer nosso primeiro filho, em 2016; então mudamos para uma paróquia com a missa nova bem celebrada e uma igreja grande, onde achamos que o choro do bebê fosse incomodar menos os demais. Hoje a missa tridentina em Curitiba é celebrada na capela de um convento no nosso antigo bairro, com autorização de dom José Antônio Peruzzo; estivemos lá com as crianças umas pouquíssimas vezes.
Nunca tive problema com o latim; na verdade, não me incomodo com a missa em nenhum outro idioma que eu não fale – nesta terça-feira faz 20 anos que me mudei para Curitiba, e a primeira missa a que assisti aqui foi a Divina Liturgia na catedral ucraniana. Considero o versus Deum mais adequado que o versus populum. E há trechos e orações do missal antigo que são muito ricos, e infelizmente se perderam na reforma de 1969. Algo de que eu especialmente gostava na forma como monsenhor Luiz celebrava era o fato de ele nos fazer acompanhar cada parte da missa; já me ocorreu de, em alguns outros lugares, um determinado canto começar (o Sanctus, digamos) e, enquanto cantávamos, o padre já saía rezando o Cânon Romano de forma que, quando terminávamos de cantar, ele já estava lá na frente e tínhamos “perdido” um bocado de coisa (não sou liturgista, mas me parece que ambas as formas são possíveis).
O fato é que a missa tridentina é uma riqueza que não deveria ser suprimida. Como disse o papa Bento XVI na carta aos bispos que acompanhou Summorum pontificum, “aquilo que para as gerações anteriores era sagrado, permanece sagrado e grande também para nós, e não pode ser de improviso totalmente proibido ou mesmo prejudicial. Faz-nos bem a todos conservar as riquezas que foram crescendo na fé e na oração da Igreja, dando-lhes o justo lugar”. E o “justo lugar”, no caso do missal de 1962, não é o fundo de um baú trancado.
Bento XVI acreditava que a expansão da missa tridentina inclusive influenciaria as celebrações segundo o missal reformado, por exemplo incentivando uma maior reverência – algo sumamente necessário quando se avacalha tanto a liturgia, postura que Francisco condenou em Desiderio desideravi, dizendo que “é preciso cuidar de todos os aspectos da celebração (espaço, tempo, gestos, palavras, objetos, vestimentas, canções, música) e toda rubrica tem de ser observada”. Aliás, vale a pena ler o que o próprio Vaticano II pediu em sua constituição sobre a liturgia: que o latim não fosse abandonado (36); que fossem promovidos o canto gregoriano (116) e o uso do órgão (120); que se incentivasse todos os fiéis a saber cantar o Ordinário, inclusive em latim (54). Agora, me responda o leitor: onde é que isso vem sendo colocado em prática hoje?
“Na Igreja há lugar para todos” – todos mesmo?
Por fim, existe um outro argumento pelo qual uma restrição drástica à missa tridentina (ainda maior que a prevista em Traditionis custodes, que já acho excessiva) não faz sentido. O papa Francisco tem insistido na ideia de que dentro da Igreja cabem todos, e às vezes ele o diz com mais exclamações que Alexandre de Moraes em suas decisões de “censura em nome da liberdade de expressão”. E está certíssimo: cabem todos os que amam a Cristo e querem segui-Lo, mesmo que nem sempre consigam, já que somos todos fracos – o que é bem diferente de pretender que a Igreja aceite todo tipo de comportamento incompatível com o que ela defende.
“Aquilo que para as gerações anteriores era sagrado, permanece sagrado e grande também para nós, e não pode ser de improviso totalmente proibido ou mesmo prejudicial.”
Papa Bento XVI, em 2007, na carta aos bispos que acompanhava o motu proprio Summorum pontificum
E, se cabem todos, por que isso parece não se aplicar a tantos tradicionalistas que já deram inúmeras demonstrações de serem pessoas de piedade, sem espírito de gueto nem de divisão, que se submetem filialmente a seu bispo e ao papa? Sim, existe o outro tipo de tradicionalista, o rebelde – acabamos de ver isso no caso do arcebispo Viganò, e lembro de um desses domingos na Igreja da Ordem em que, antes da missa, um leigo bastante respeitado entre os tradicionalistas resolveu fazer pregação contra o Concílio Vaticano II sem que monsenhor Luiz soubesse nem autorizasse. Mas o fato de estes últimos existirem não autoriza que aqueles outros sejam privados do que é, de fato, um tesouro litúrgico.
Um detalhe interessante dessas últimas notícias e rumores é que eles costumam identificar como os verdadeiros inimigos da missa tridentina na Cúria o cardeal Roche e seus assessores, como o arcebispo Vittorio Viola, responsável pelo “não” ao arcebispo de Melbourne e que se orgulha em usar o anel episcopal que pertenceu ao arcebispo Annibale Bugnini, principal autor da reforma litúrgica de 1969. Claro, Francisco assina os documentos (e o cardeal Roche não estaria onde está se o papa não quisesse assim), mas os que realmente querem acabar com a missa tridentina estariam não na cadeira de Pedro, mas no Dicastério para o Culto Divino. Rezemos, então, para que o papa seja melhor assessorado daqui em diante, ou ao menos para que saiba tomar as melhores decisões quando quiserem lhe empurrar algum absurdo.