Seria ousado garantir que a pátria amada finalmente encontrou o fundo do poço. Afinal, existe vexame maior do que o afastamento de dois dos quatro primeiros presidentes eleitos desde a reabertura democrática? E o fato de os demais, pelo menos em algum momento durante os seus mandatos, terem governado sob a ameaça de impeachment? Até mesmo uma ditadura militar consta em nosso currículo.
Convém evitar posicionamentos definitivos. Parece-me claro, contudo, que desde 2013, quando inauguramos este período em que ira e irracionalidade permeiam os debates público e privado, não vivemos um momento tão desolador.
Ainda assim, mesmo sob o jugo de um governo determinado a apagar quaisquer convenções alinhadas ao zeitgeist civilizado — da fiscalização de agrotóxicos e do desmatamento às lombadas eletrônicas; da luta contra o trabalho infantil às autoescolas —, é possível reconhecer a existência de um saldo positivo nessa barafunda envolvendo o vazamento de conversas entre o ministro Sérgio Moro e o procurador da República Deltan Dallagnol.
A começar pelo enterro da narrativa que afirmava haver uma conspiração para trancafiar o ex-presidente Lula. Não que seus entusiastas concordem com essa premissa. As divulgações dos diálogos reforçou as suas convicções. Todavia, nenhuma das mensagens expostas foi capaz de colocar em xeque as provas que conduziram o político mais influente da Nova República à prisão.
Tampouco empanaram a realidade: Lula se viu condenado, inclusive, em instâncias superiores. Significa dizer que não só o juiz Sérgio Moro, mas outros dois tribunais (TRF4 e STJ) analisaram as evidências e também julgaram que ele devia ser penalizado pelos crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro.
Até aqui o escândalo não conseguiu livrar Luiz Inácio da cadeia, mas já é suficiente para macular as auras impolutas atribuídas ao ministro da Justiça e ao coordenador da Lava Jato em Curitiba. Assim como acontece no outro extremo do sanatório, é inútil esperar pela racionalidade de seus fãs. Não há o menor reconhecimento de desvio de conduta. E quem por um instante cede ao argumento de pronto os absolve.
Pois ambos, Moro e Deltan, fizeram por merecer um sentimento de decepção, pelo menos da parte dos cidadãos alheios ao embate ideológico. Mais popular do que o próprio presidente, o ex-magistrado já tinha dado indícios de sua natureza no episódio “Bessias” — vazamento do áudio entre Lula e Dilma —, e ao suspender parte do sigilo da delação de Palocci a sete dias do primeiro turno da eleição passada.
Quanto ao procurador, o tom messiânico é irrelevante na medida em que sobeja calma para atropelar conceitos mínimos de impessoalidade. Pouco interessa, diga-se, se é legal ou não conceder palestras. Só faltava não ser. No campo ético, a conduta revelada pelas mensagens e o entusiasmo ao comentar a possibilidade de lucros com outros procuradores são, na melhor das hipóteses, reprováveis.
O atual momento é preocupante sob vários aspectos; acima de todos eles a confiança do governo em promover uma transformação moral na sociedade. Nesse sentido, é sintomática a veemência com que Bolsonaro confirmou o desejo de favorecer seu filho, indicando-o ao cargo de embaixador, ou agora, ao ver com naturalidade o uso de um helicóptero da FAB por seus parentes de modo a facilitar suas presenças em um evento estritamente familiar.
Por essa razão, deixando de lado os meandros da ação criminosa que possibilitou a divulgação das mensagens, o atual momento oferece uma chance. E dentre tantas agendas prementes, poucas rivalizam com a necessidade de abandonarmos a idolatria.
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