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Ana Carla Abrão: “O Estado, hoje, reforça a desigualdade social.  Se não comprar essa briga, da reforma, tudo que a gente fizer terá impacto menor.”

Foto: Denis Maron/Reprodução Facebook (Foto: )

Elencar o currículo de Ana Carla Abrão seria um despropósito pela incompatibilidade entre a sua extensão e a concisão que se espera de um parágrafo que se pretende introdutório a uma entrevista em que gargalos na nossa economia foram detalhados, expondo o tamanho do desafio que o país terá de enfrentar se quiser evitar o pior.

Contudo, a economista, hoje sócia e principal executiva da consultoria de gestão Oliver Wyman no Brasil, com passagem pelo Banco Central e a Fazenda de Goiás, onde liderou um bem-sucedido ajuste fiscal focado em eficiência e cortes de gastos, fez questão de enfatizar o feito que na certa lhe confere mais orgulho: “ser mãe de quatro filhos incríveis!”.

Boa leitura.

 

Recentemente, foram noticiadas declarações do Onyx Lorenzoni pedindo calma, passando a impressão de que não precisa ter pressa…

Ana Carla Abrão — … que tem 4 anos para aprovar a Previdência.

— Exato, que tem 4 anos para cuidar do futuro dos nossos filhos e por aí vai. A pergunta é: o Onyx não tem noção do tamanho do buraco, o governo não tem noção, ou o que interessa é que a equipe econômica está sendo bem montada e o melhor a se fazer é ignorar essas declarações? Qual é a sua leitura?

A.C.A. — Olha, o primeiro ponto é o seguinte: é óbvio que não tem 4 anos para aprovar a Previdência. O que eu acho que eles estão fazendo, que o Onyx tentou fazer, é tirar a pressão, mas eles têm total clareza do tamanho do probema, total clareza da necessidade urgente de aprovar a Previdência, e eu não tenho dúvida que a estratégia é aprovar a Previdência o mais rápido possível. Agora, é claro que eles têm de tirar um pouco da pressão, porque está todo mundo de olho, querendo saber “e aí?”. E a gente sabe que se não aprovar a Previdência logo no início a gente tem um problemaço.

— A pergunta é justamente essa, qual seria o problema?

A.C.A. — Primeiro um problema orçamentário, a Previdência vai consumir ainda mais recursos que deveriam ir para outras áreas, a gente vai ter também a regra de ouro sob ameaça… Ou seja, as âncoras fiscais começam a ruir. E mais, a gente está inserido em um contexto que… eu detesto usar essas expressões, “o mercado vai virar”, “o mercado não vai aceitar”, porque eu acho que o problema não é o mercado. O problema é uma virada de humor em que a gente deixa de ter investimento, deixa de ser retomada do crescimento, geração de empregos e etc. Então, o grande problema é: se nós não tivermos uma reforma da Previdência logo no começo desse governo, toda a situação vai ficar muito mais difícil. E governabilidade, que a gente já tem dúvidas se vai ter a capacidade de aprovar outras reformas necessárias, vai ficar cada vez mais estreita. No momento em que você tem uma crise fiscal, você já não tem muito grau de liberdade, e aí começa a ter menos ainda? Como é que esse país volta a crescer?

— Uma fonte minha bem próxima à futura equipe econômica me disse que devem fazer passar uma reforma bem leve para mais tarde tentar outros ajustes. Uma bem leve seria melhor do que nada? Adianta alguma coisa?

A.C.A. — Uma mais ou menos é bem [fala com ênfase] melhor do que nada. Uma mais ou menos que inclua idade mínima… E, assim, que toda essa estratégia de pedir calma, de que a reforma da Previdência não é essa panaceia, já sinaliza que não teremos a reforma dos sonhos, como a do Paulo Tafner. Acho que começa com a própria declaração do presidente eleito de que a reforma proposta era agressiva, quando não é, ficou bem desidratada […] e o próprio filho do Bolsonaro lá fora dizendo que “ah, a gente vai tentar”. Tudo isso, no meu entendimento, é uma tentativa de tirar a pressão para que, no momento que não vier a reforma ideal, a gente continue dentro de um cenário positivo, frente a não ter reforma nenhuma.

— Como é que você enxerga o poder de articulação do futuro governo? Há uma grande discussão sobre essa tentativa de negociar de maneira diferente, de tentar combater o sistema como ele é…

A.C.A. — Em primeiro lugar, terão de escolher quais brigas eles vão comprar. Uma delas é com os militares… Talvez um ajuste aqui, outro ali, desde que negociado, algo muito leve. Tem briga demais para comprar. Não vão comprar todas. Justamente porque o país está tomado pelos interesses particulares, não só de empresários e servidores públicos, mas, inclusive, porque hoje a gente tem um Congresso que está lá para defender interesses particulares e vem outro aí ainda mais fragmentado, mais segmentado, representativo de classes específicas e de corporações. Então, não vai dar para sair brigando com todo mundo. Acho que eles vão elencar ali as brigas a serem compradas. Dito isso, sobre como vão acontecer essa negociações com o Congresso, eu acho que é a grande incógnita. Do ponto de vista econômico, quando você olha a pauta, a agenda, quando você vê quem está lá… a direção é a dos sonhos dos economistas que estudaram pelos livros que eu considero os certos. Então, do ponto de vista do que precisa de ser feito, como, quais são as prioridades, qual é a agenda econômica, abertura comercial, privatizações e investimento em infraestrutura, é tudo música para os ouvidos. Está tudo lá. Até reforma do Estado está sendo falada, reforma da Previdência e etc. Agora, tem um lado que é justamente combinar com os russos. Como é que você vai viabilizar isso do ponto de vista político? Acho que é a grande incógnita desse governo. Como é isso de negociar com bancada? Existe, inclusive, uma questão regimental. Existe o líder que encaminha, as comissões […] e eles estão achando que dá para passar ao largo dessas coisas. Eu não sei como isso vai funcionar. Acho estranho. Você imagina, você tem um sistema caótico, com esse monte de partido, esse monte de líder, essa pulverização, aí você diz “não, vamos esquecer essa bagunça e vamos partir para outra”, que é, não mais negociar com os partidos, mas com as bancadas. É sair de um caos e ir para outro caos. Eu, particularmente, não sei como isso vai funcionar no dia a dia. Se eu tivesse que apostar em um cenário, até por ter vivido durante dois anos muito próxima do Congresso e por conviver em uma família de políticos, eu diria que ele vai ter de se render ao sistema. Acho que, eventualmente, com algum avanço, mas o sistema está aí. A gente consegue mexer marginalmente com as regras, mas não virar o sistema de ponta cabeça. Ou em um determinado momento ele cede  a um processo político que está estabelecido, um regimento, uma democracia com um Congresso forte, gostemos dele ou não, ou não vai conseguir avançar no que interessa, que são as reformas.

— Quais seriam as brigas indispensáveis, que o governo deveria enfrentar? Há poucos dias um dos filhos do futuro presidente, Flávio Bolsonaro, eleito senador, falou sobre a força das redes sociais. Sobre como, graças à tecnologia, não existe mais aquela necessidade de tomar as ruas para pressionar. Usou, inclusive, a vitória do pai como exemplo. Como você vê esse entendimento?

A.C.A. — Acho que ele tem razão, de fato, a comunicação hoje em dia é muito mais direta. A eleição do Bolsonaro é um exemplo disso, a eleição do Zema em Minas Gerais. Você tem um movimento em que a sociedade se comunica mais diretamente e uma parte que também é contra o establishment, seja ele a imprensa, os políticos… tem uma novidade aí nesse cenário. O que é muito positivo […]. Você tem os empresários, as corporações, as classes… o que quer queseja, com grande poder de grito, de mobilização em favor dos seus privilégios e dos seus benefícios. Quem é que paga por isso? Uma sociedade, por definição difusa, que não consegue se mobilizar e acaba perdendo as brigas. Quando você tem uma maneira de se comunicar mais direta, a capacidade de mobilização fica muito maior. Então é positivo. Inclusive, quando eu faço a defesa da reforma do Estado, eu falo muito isso… Que cidadão que não quer um serviço de melhor qualidade? Quem não quer pegar um ônibus que funcione melhor, um serviço de mobilidade urbana mais eficiente? Todos querem, mas (sempre) tem uma massa de servidores públicos que diz que não quer a reforma do Estado. Então, na medida em que você consegue se comunicar de forma mais ampla, você ganha força para brigar nessas agendas difíceis, para quebrar interesses. Então, eu acho que ele tem razão. De fato, ajuda a gente a ter uma situação em que a sociedade se comunica melhor e fala diretamente com o político, algo que não acontecia há pouco tempo atrás.

A.C.A. — […] Qual era a outra pergunta?

— Das brigas…

A.C.A. — Acho que a Previdência, sem dúvida nenhuma. Essa eu até colocaria na categoria hors-concours. Tirando isso, tem a briga das isenções fiscais. O país usou e abusou, os governos petistas, essa nova matriz econômica… disseminaram uma coisa absurda chamada isenções setoriais. Só que as isenções setoriais viraram “passa um boi, passa uma boiada”. Nunca se avaliou essas isenções fiscais. Nunca se mediu exatamente quais foram os resultados, do ponto de vista de investimento. Na verdade se provou que foi inócuo. A gente abriu mão de recursos… E isso vale no nível federal e mais ainda no nível estadual, com a guerra fiscal. As isenções ficais, primeiro, eram uma forma de atrair investimentos. Depois, “ah, porque o nosso sistema tributário é caótico, então vamos dar isenções aqui porque os empresários estão sendo massacrados”, com isso a gente tornou o sistema mais caótico, elegemos alguns amigos do rei, só que hoje todo mundo tem o seu pedaço de isenção, todo mundo tem, como o Marcos Lisboa bem fala, a sua meia-entrada, e isso passou de todos os limites. No nível federal, a gente tem aí a Rota 2030, que eu gosto de chamar de 1930, porque a gente está no século passado em relação a como trata a indústria automobilística e várias outras. Então a gente tem de começar, agora, a desmontar esse processo. Eu acho que essa é uma briga que esse governo deveria comprar. Parece que vai. Pelo menos as sinalizações são nesse sentido. A segunda briga é, definitivamente, a reforma do Estado. É a pauta que venho defendendo há muito tempo, eu não consigo vislumbrar um país melhor, mais desenvolvido, com melhores serviços públicos, com melhor ambiente de negócio e uma máquina pública como a nossa. Uma máquina pública que está depreciada, que não investe na capacitação dos seus servidores, que consome mais recursos do que precisa, de baixíssima produtividade e que está entregando serviços públicos de péssima qualidade e de forma crescente. Ou seja, está piorando ano a ano. Se a gente não fizer essa reforma, todas as outras, em alguma medida, ficam minimizadas, perdem eficácia, porque o Estado hoje é um entrave para a economia brasileira. E mais: o nosso Estado, hoje, reforça a nossa desigualdade social.  Então, se não comprar a briga da reforma do Estado, tudo que a gente fizer terá impacto menor.

— Fazendo uma pausa aqui, saindo um pouco da economia, eu gostaria de te ouvir a respeito da questão política, o momento vivido pelo país, o governo cheio de militares… Como você vê o cenário?

A.C.A. — Eu acho que estamos vivendo, assim como em vários outros momentos na história brasileira, um pêndulo. A gente foi um pouquinho demais para o lado de lá… Pensando em tudo o que a gente viveu nos últimos treze anos, em particular nos últimos oito anos, a sociedade chegou num ponto em que ela gritou não. Eu até escrevi uma coluna sobre isso. Ela não optou por algo, mas contra algo. Tomou a decisão de negar tudo o que estava aí. E quem melhor representou essa negação foi o Bolsonaro e todo esse cenário que se criou em torno dele. E aí a gente pode colocar os militares, essa relação meio mítica com os Estados Unidos, o Trump, esse resgate do nacionalismo… Então, eu vejo que a gente entrou num processo meio esquizofrênico até. Ficamos tão machucados pelos últimos anos que a sociedade resolveu dizer “olha, eu quero algo que seja muito diferente, que seja a negação daquilo lá”. Agora, como todo pêndulo, vai e volta. Outro dia eu estava conversando com o Paulo Hartung e ele falou uma coisa com a qual eu concordo em gênero, número e grau: nós estamos vivendo o fim de um ciclo. Não é o começo. Não é que a gente agora entrou num movimento novo. Não. A gente está fechando um movimento histórico. E fechando, justamente, porque estamos reagindo a um processo que foi muito doloroso, para o Brasil, nos últimos anos. Então eu acredito que todos esses movimentos mais extremados… Vamos conviver com eles durante os próximos 4 anos, mas a gente vai acabar voltando para algo que seja mais representativo de uma sociedade plural, diversa e moderna. Que tem traços de conservadorismo, tem, mas a gente tem uma diversidade intrínseca que vai resgatar muito dessa coisa mais laica, com respeito à diversidade e à liberdade. Mais próxima do liberalismo no sentindo amplo.

— E esse pêndulo aconteceu também na economia?

A.C.A. —  Não. Acho que no fundo a gente teve boas políticas e más políticas. Se a gente voltar lá para o Fernando Henrique, tivemos o Plano Real, uma política econômica mais organizada, social-democrata, depois a gente teve ali um Lula I, dando seguimento a essa agenda de reformas, de aumento de confiança, e aí a gente teve um período de péssimas políticas econômicas. Se de esquerda ou de direita eu não consigo nem imaginar, porque eu não classifico dessa forma. […] No fundo, o que eu separaria é a gestão Palocci e a gestão Mantega. A quebra foi muito clara ali. Agora a gente tem uma orientação mais liberal, que pressupõe reduzir o poder de muita gente e a resistência é grande do outro lado. Então, não sei o quanto que vamos conseguir trilhar essa agenda liberal, mas, pelo menos, temos a volta de uma boa política econômica, desde o Temer, com a equipe econômica nova, o Mansueto, a Ana Paula, o Guardia… Ou seja, desde que o Temer assumiu, a gente a volta a um programa econômico bom, bem estruturado, correto, com resultado. Dito isso, quando a gente fala de liberalismo, Estado mínimo, Estado máximo… a gente esquece de um ponto fundamental, e voltando até na questão do Estado reforçador da desigualdade de renda: o Brasil hoje é o terceiro país mais desigual do mundo. Deve até ter piorado, o dado que eu tenho é de 2015, de lá para cá pirou. E eu não consigo entender um país que vai fazer qualquer política econômica, que vai tomar qualquer decisão de política pública, sem pensar que a gente precisa ter como objetivo melhorar a vida das pessoas. Principalmente de mais da metade da população que hoje depende de serviço público básico para ter um mínimo de chance na vida. Então, eu tenho muita dificuldade de entrar nessas discussões muito extremadas. Quando a gente fala de política econômica, de política social, de tamanho de Estado, mais liberal, mais privatizante… o que a gente precisa é melhorar a vida das pessoas. Qual é o tamanho do Estado? Qual é a eficiência que eu preciso ter para poder chegar lá? Porque, também, a gente não vive sem Estado. Acho que é esse o debate que está faltando, quando a gente entra muito nesses extremos, nos rótulos… que até apareceu um pouco durante a disputa eleitoral, mas depois, com aquela degringolada toda, a gente acabou se perdendo.

— Eu queria ouvir um pouco de você sobre os estados. Eu sou carioca, você adora o Rio… Tem saída?

A.C.A. — Tem. Saída, tem. E o incrível é que está na mão. Mais do que em outras situações. O problema é que… Tem duas questões: uma é ter a clareza do tamanho do problema, e eu venho falando muito isso. Como a gente tem, no caso dos estados, uma questão que é de falta de transparência e padronização das estatísticas, que deveria estar garantido pelos tribunais de contas, a gente tem uma situação em que não foi dada essa clareza. No caso da União, por exemplo, todo mundo sabe que a gente tem uma crise fiscal. Todo mundo sabe que temos um déficit de 150 bilhões e que todo ano, sucessivamente, o País está tendo que emitir dívida para financiar um desequilíbrio fiscal. Está nos jornais, no Congresso, as pessoas debatem, os economistas repetem esses números e etc. Quando você vai para os estados, cujo problema é muito maior do que o da União… Bem, primeiro nós temos a nossa independência federativa. A nossa Federação está articulada para que os estados sejam independentes em várias questões, uma delas justamente é a sua gestão fiscal. As leis são passadas nas assembleias, as contas são aprovadas nas assembleias, tem um tribunal de contas estadual que vai supervisionar e garantir tudo isso. Só que a gente tem 27 estados. Cada um com sistemas tributários distintos, contabilidades distintas e tribunais de contas que não estão fazendo os seus trabalhos. Então, à medida que a crise dos estados foi acontecendo, a gente não viu. […] Por exemplo, se não me engano, em 2017 Goiás teve o segundo maior superávit do Brasil… Goiás está quebrado. Superávit primário, para um estado, não quer dizer absolutamente nada, se ele não tem as contas bem-feitas, com transparência. Pode ser, muitas vezes, consequência, porque como ele não tem caixa, uma vez que está consumindo a receita toda com despesa de pessoal, ele não gasta. Um tribunal estadual de contas que valida uma conta de despesa de pessoal com uma metodologia diferente da STN está obviamente maquiando essa informação. Então, infelizmente, essas contabilidades não estão padronizadas e vão sendo feitas em benefício… dessa falta de transparência. Porque ninguém quis mostrar que não estava cumprindo a lei de responsabilidade fiscal, que estava quebrando e, via essa autonomia federativa, foi possível criar aí contabilidades criativas. […] Vamos tirar a venda? Vamos tirar a capa invisível e encarar o problema? Esse é o primeiro ponto. Segundo, existe uma única linha que é a fonte de desequilíbrio dos estados, que se chama despesa de pessoal. Você pode quebrar essa linha com servidores ativos ou inativos, mas é essa linha que precisa ser resolvida, quer seja por uma reforma da Previdência, quer seja por uma reforma do RH dos estados, quer seja por uma combinação das duas coisas, como é o caso do Rio de Janeiro, de Minas Gerais, do Rio Grande do Sul, de Goiás, que são casos mais graves.

— Comprometimentos altíssimos na folha…

A.C.A. — Oitenta! Oitenta e cinco por cento! Não dá para funcionar! O ponto é o seguinte, Mario, a gente entrou aí nessa deterioração das contas dos estados… Quem é o primeiro a sentir em um processo em que você não tem receita mais a não ser para pagar despesas de pessoal e déficit da Previdência? É o cidadão, porque o serviço público começa a sentir. Quem é o segundo? É o servidor público. Porque nós chegamos numa situação em que os estados não têm mais dinheiro para comprar combustível para os carros da polícia, o colete à prova de balas, remédios para os hospitais… então,  o próprio servidor não tem condições de prestar o serviço. Ou a gente reforma esse sistema ou a gente vai realmente entrar em colapso. […] Tem um outro lado dessa equação que é a a guerra fiscal. Os estados foram abrindo mão de receita de forma sucessiva, ao longo dos últimos vinte anos, porém mais fortemente nos últimos dez anos, em uma espécie de leilão perde-perde. É claro que a gente precisa ter instrumentos de atração de investimentos para estados periféricos. Não adianta eu achar que Goiás vai competir com São Paulo em pé de igualdade, dado que não tem uma política de desenvolvimento regional. O problema foi o momento em que Goiás dava uma isenção de x, Mato Grosso x mais um, Paraná x mais quatro… até chegar nesse ponto em que a base toda foi erodida. 

— E como é que resolve?

A.C.A. — Primeiro, tem de calibrar os incentivos fiscais, sim. Tem excessos. Há estados que já fizeram isso, que estão com os incentivos fiscais mais organizados e outros que ainda não fizeram e vão precisar fazer se quiserem recuperar receita. Não adianta achar que vão recuperar com crescimento, porque ele não vem enquanto a situação estiver ruim. Quem quer se instalar no Rio de Janeiro hoje? Ninguém. Você pode cobrar zero de ICMS, dar 100% de isenção fiscal, mas nessa situação de caos? Segundo, precisa fazer a reforma do estado. E o que é a reforma do estado no nível local? A partir de 1988, em que a gente ampliou a estabilidade para todo o serviço público, criou lá o tal Regime Jurídico Único, que de Regime Jurídico Único não tem nada, até porque ele permite que cada carreira tenha a sua legislação. E mais do que isso: pela autonomia federativa, os servidores públicos do estado ou do município têm que ter as suas leis de carreiras definidas pelas suas respectivas jurisdições. Ou seja, o executivo encaminha a lei de carreira para a sua assembleia local que aprova. Isso foi gerando uma multiplicação de carreiras nos serviços públicos Brasil afora. O município de São Paulo tem umas 52 carreiras, Goiás umas 120… multiplica isso por 27, por 5.500 municípios e imagina quantas carreiras existem no serviço público hoje em dia. Paralelo a isso, foram sendo criados benefícios e blindagens específicos. A mais gritante são as promoções e progressões automáticas. Você faz concurso hoje para policial, ele vai crescendo na carreira automaticamente por tempo de serviço, tem que fazer outro concurso, porque os que entraram antes já não estão na rua, mas nos gabinetes, uma vez que foram promovidos… E é a mesma coisa para médico, auditor fiscal, todo mundo. Então, você tem um processo em que a máquina está preparada para se autoalimentar. Tem sempre de fazer concurso para jogar mais gente para dentro. Isso, obviamente, cria um crescimento vegetativo das folhas. Então, você tem cada vez mais servidores, cada vez tem de fazer mais concursos para ter servidores na ponta, atendendo os cidadãos, e, como todo mundo vai crescendo, o número de servidores ganhando mais aumenta. Mesmo que você não dê aumento nenhum, a sua folha vai crescer sete por cento ao ano, independente da inflação ou do que estiver acontecendo. Se a gente não revisar esse processo, não consegue estancar esse problema. Tem de acabar com essa história de promoção e progressão automática no serviço público. Precisamos vincular isso a mérito. A avaliação de desempenho. A pessoa que presta um bom serviço, que tem bom desempenho, ela sobe. Inclusive, se tiver cargos acima. […] A gente precisa retomar as ferramentas de gerir pessoas no serviço público. Precisamos motivar as pessoas para que elas prestem o melhor serviço possível, da forma mais eficiente. Então, precisamos da reforma da Previdência dos estados. E racionalizar, alguns, nem todos, os incentivos fiscais, para começar a ter um equilíbrio entre receita e despesa e assim começar a reverter o problema estrutural nos estados. O que não pode é fazer essa discussão fácil que é bater em Brasília para pedir dinheiro.

— Eu ia te perguntar isso, o que a União deveria fazer diante desse cenário?

A.C.A. — Pois é, eu sou do tipo que diz “não dá para deixar o estado quebrar”. Não dá. Os estados proveem serviços básicos, na sua grande maioria. Tem uma questão social aí. Agora, também não dá  para ficar empurrando o problema com a barriga.  O problema não é de mais dinheiro e, sim, de arrumar a casa. O Rio de Janeiro é a maior prova disso, foi um dos estados que conseguiu dinheiro por causa das Olimpíadas e etc. e a gente viu o buraco que se cavou. Não é dando dinheiro que vai se resolver o problema, é se resolvendo o problema que vai se resolver o problema (diz, aos risos). E a gente parte identificando o problema certo. A união não pode impor essas soluções (Previdência, reforma do estado e racionalização dos incentivos fiscais) pela questão da autonomia federativa, mas ela tem, sim, condições de coordenar esse processo, até porque é um problema sistêmico. Lá em 2015 eu me lembro de ter essa conversa com o Joaquim Levy, e ele era muito claro: “Ana, precisa fazer o ajuste”. Ele já falava isso que eu falo hoje lá atrás. O problema é que, alguns estados fizeram, basta ver o Espírito Santo, depois da tempestade perfeita que eles tiveram, com Samarco, com queda de royalties e etc., o Paulo Hartung vai entregar um estado arrumado. Outros tentaram se virar nos trinta, REFIS… a gente chega em 2018 pior do que em 2015. Não são mais quatro estados com problema. Já são dez. Logo serão quinze. Vinte.

— Para finalizar, eu ouço explicações como as suas, tudo tão claro, detalhado, e fico me perguntando o que falta para que a sociedade assimile a realidade. A luta contra as narrativas está perdida?

A.C.A. — Eu acho que a gente tem de trazer a narrativa para algo que as pessoas sentem e entendem: é justo num país em que mais da metade da população ganha um salário mínimo de aposentadoria a gente ter 1% da população tendo a sua financiada pelo governo? Não é. Porque a gente precisa de dinheiro para saúde, educação, segurança… A gente precisa dar exemplos que as pessoas entendam. O que eu falo e me motiva muito nesse debate é o seguinte: o filho do pobre só tem a chance de ganhar mais do que o pai dele na escola pública, mas desde que seja uma educação de qualidade. Quem não tem como ter um plano de saúde depende do SUS, mas se a fila for enorme e ele morrer ali… não é aceitável. E segurança, se eu não tiver uma eficiente… eu e você, a gente se vira, porque a gente anda por aqui. Agora, é o pobre que tem o filho cooptado pelo crime e que morre cedo. É preciso fazer essas conexões.

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