Apontar um fiapo que seja de originalidade na retórica da atual chefia não é tarefa simples. Jovens certamente têm dificuldade de recordar e quem enverga a mortalha do militante tampouco está disposto a fazê-lo, mas Fernando Collor de Mello não vendia um discurso muito diferente do bolsonarista. Idem em relação a Lula — só para ficar em exemplos disponíveis no período pós-reabertura democrática.
Todavia, nem mesmo três meses se passaram desde a posse e uma suspeita desconcertante começa a ganhar corpo em relação ao novo governo: e se ele, enquanto patina sob o disfarce do amadorismo, assumindo atitudes espetaculares, no fundo trabalha em favor do caos? E se, noves fora suas incapacidades e a aversão aos protocolos, o bolsonarismo estimula a balbúrdia de caso pensado para impulsionar o seu projeto de poder?
Ideal seria que uma pergunta assim não passasse de teoria conspiratória. Entretanto, os acontecimentos até aqui, acima de tudo a postura adotada pelo presidente e seus filhos, impõem esse questionamento.
Já não faz sentido comprar a tese de que Carlos age à revelia do pai em seus ataques a importantes componentes e aliados do governo. Tal tese expirou quando a abrupta exoneração de Gustavo Bebianno, um ministro importante para as articulações na Câmara, contou com a ação decisiva de Jair Bolsonaro.
Igualmente, não cabe mais virar o rosto para comportamentos frontalmente avessos aos interesses do país, como cogitar a diminuição da idade mínima de aposentadoria da mulher prevista na proposta da reforma da Previdência antes mesmo que as negociações tivessem início. Ou, há coisa de poucos dias, afirmar que não gostaria de fazê-la.
Porém nada superou esse confronto recente com o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, e por tabela, com o próprio Congresso.
Não se trata aqui de lamentar a arenga somente pelo fato de ela ser gratuita ou por envolver justo Maia, talvez a pessoa com maior capacidade para costurar apoios com quem Paulo Guedes possa contar hoje em dia. Acontece que extrapolou os limites do bom senso — mesmo considerando ser este um governo coalhado de incautos —, o descuido e a insistência com as palavras. Assim como chocou a subsequente fala do mandatário, eximindo-se de responsabilidade quanto à aprovação da reforma da Previdência, desta forma, tentando passar a conta para a classe política.
Pois, se extrapola e choca talvez seja por ainda não considerarmos a hipótese de ser precisamente esse o plano de Bolsonaro, em parceria com um grupo radical que aparenta ditar as normas no seu governo e o envenenamento do debate público: a aposta na anarquia.
É sintomático que tão cedo a atual administração suscite temores de que possa se tornar uma das piores na história recente da República. Uma nesga dessa percepção inclusive já se reflete nas pesquisas de opinião pública, mesmo considerando que grande parte dos eleitores votou contra o PT e não exatamente a favor de Bolsonaro.
Que a figura do presidente não se encaixa na narrativa de um líder preocupado em aprovar a pauta liberal, começando pela reforma da Previdência, já não é uma questão de opinião, ainda que possa ser de fé. Tampouco resistiu para muito além do sufrágio o plot do líderinteressado na união dos brasileiros.
No fim das contas, uma avaliação sincera que pode ser feita sobre este governo não tem como contornar o fato de que ele reúne pessoas simplesmente incompatíveis com os cargos que ocupam. E aqui não me refiro somente ao presidente, mas também a seus filhos e a boa parte do ministério.
De todo modo, e redijo estas linhas com um misto de cautela e preocupação, tudo pode piorar. A questão agora recai sobre o tamanho do estrago que as células fundamentalistas atreladas ao governo serão capazes de fazer na visão de mundo do brasileiro. O quanto que ele, o cidadão, ainda será colonizado a ponto de perder por completo o seu senso crítico.
Já vimos esse filme antes. Durou longos trezes anos e, de tão traumático, nos trouxe até aqui. A diferença agora é que ele pode fazer parte de um projeto maior.
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