A doutrina Bolsonaro é capaz de se espalhar para além do espectro político, contaminando sobremaneira um país há tempos dividido. Isto posto, a deturpação do liberalismo está entre os seus efeitos colaterais mais perversos.
A volúpia de quem aproveita qualquer oportunidade para se autoproclamar liberal — como se esse simples ato pudesse alçar alguém a um panteão civilizatório — é o menor dos problemas. Até porque se o sujeito for liberal estará de fato contribuindo para uma sociedade melhor. O problema é que nem sempre o título tem razão de ser.
Há em curso um processo de ressignificação conceitual, melhor dizendo de limitação, em que o defender práticas econômicas livres das amarras do Estado, não apenas basta, mas é só o que interessa para o cidadão ser merecedor do brevê liberal.
Tarefa árdua seria tentar separar o Partido Novo do atual zeitgeist. Árdua e impossível. O posicionamento do principal nome da legenda, João Amoêdo, que repetidas vezes se declarou “liberal na economia e conservador nos costumes”, é tão bizarro quanto sintomático. Pior mesmo só o apoio do partido ao governo, seja por meio da timidez nas críticas, por vezes da absoluta ausência delas, ou da desfaçatez em lidar com a atuação de Ricardo Salles a serviço do bolsonarismo.
Vale dizer, o Novo não surgiu por acaso. É fruto da mesma catarse que levou a sociedade a optar especificamente por Jair Bolsonaro na hora de rejeitar o PT. Existe um padrão estético mais bem acabado, não resta dúvida, entretanto o partido não deixa de ser toureado pela mesma gana sado-revanchista que ditou a radicalização do discurso ideológico antiesquerda — tanto assim que o óbvio anacronismo no matrimônio com um presidente da República sindicalista foi ignorado.
É perfeitamente possível ser liberal na economia e conservador nos costumes. Há inclusive um termo para isso: conservador. A diferença é que, do ponto de vista humanitário, tal jogo de palavras enseja um efeito ainda pior. O sujeito intransigente com a ideia do aborto ou de pessoas do mesmo sexo constituindo uma família, por exemplo, pode até ser tachado de obtuso, mas não de desonesto intelectual.
No fim das contas, como em um campo de batalha, o inimigo camuflado é sempre mais perigoso.
Não se trata de menosprezar a agenda econômica. Os boletos teimam em não atrasar e poder honrá-los com dignidade é o mínimo que o cidadão espera. A questão é que não podemos abrir mão de valores democráticos e genuinamente liberais. Sob pena de nos tornarmos moralmente compatíveis a regimes em que as minorias são constrangidas, padrões comportamentais são impostos ou vetados pelo Estado e o laicismo perde espaço.
Transformação esta, aliás, que nunca esteve tão próxima de se consumar.
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