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Em junho de 1968, cem mil tomaram a Avenida Rio Branco para protestar contra a ditadura. No Vale do Ribeira, um pré-adolescente ainda iniciaria sua trajetória no Exército. Hoje ele preside o país. Cem mil estão debaixo da terra.
Três milhões de infectados e cem mil mortos. A pandemia impôs sofrimento por onde passou, entretanto nenhum governo proporcionou ao vírus condições tão favoráveis.
A inépcia, o desprezo pela vida e a natureza autoritária de Jair Bolsonaro não poderiam ter levado a outro cenário. Suas previsões iniciais acerca do número de óbitos e os discursos anticientíficos não se sustentavam, mas nem as evidências foram capazes de frear os deboches, o lobby pró-cloroquina e os ataques à democracia.
"Vamos tocar a vida e buscar uma maneira de se safar desse problema”, disse o presidente na última quinta-feira. No dia seguinte, o total de vítimas fatais da Covid-19 no Brasil emparelharia com o de mortes instantâneas nas detonações das bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki.
Quem comete genocídio é genocida, mas o título não faz jus ao mito: sua obra está inacabada.
Embora a cooperação entre governo e Sars-Cov-2 não tenha sido planejada, a debacle sanitária premiou a tenacidade de uma administração concebida para destruir. O coronavírus escancarou uma anomalia institucional, contudo Educação, Meio Ambiente, Cultura e diplomacia já vinham sendo dilapidados.
A discussão sobre quem fez mais estrago é inútil: Abraham Weintraub, Ricardo Salles e Ernesto Araújo têm mérito inegável ao gravar seus nomes no panteão dos piores ministros na história da República, todavia jamais alcançarão quem os nomeou.
Por meio de mentiras e falas pensadas para dividir, Jair Bolsonaro solapou nossa civilidade e capacidade de demonstrar empatia. A cada instante nos tornamos mais duros, amorais e rancorosos.
Por meio de afrontas à ciência e ao bom senso, o presidente levou dezenas de milhares à morte. Alguém eleito por 57 milhões não tem como fugir de suas responsabilidades, a maior delas assumir-se como exemplo.
Pesquisas apontam para uma recuperação nos índices de popularidade daquele que menosprezou a doença e o sofrimento de tantas famílias brasileiras.
A hipótese de um governo Bolsonaro em dois mandatos só não assusta mais pela incerteza que ela própria impõe: se em um ano e meio produziu-se tanto estrago, o que restará de nós em 2022?