Não precisei da pandemia para considerar Jair Bolsonaro incapaz e sua eleição à presidência da República um descalabro. Sobre sua postura diante da peste, sustento a mesma opinião desde março de 2020: Jair trabalhou — ainda trabalha — a favor do vírus como nenhum outro mandatário no planeta. Dito isso, ele não é o único responsável pela calamidade que estamos vivendo.
O comportamento do presidente é de tal sorte temerário que cedo ou tarde terá de responder na Justiça por seus atos — incentivar aglomerações, minimizar a gravidade da doença, lançar dúvidas sobre o benefício das vacinas, fazer propaganda de drogas ineficazes e menosprezar o uso de máscaras.
Também é merecedora de escrutínio a desastrosa gestão da Saúde, com destaque para a recusa da proposta feita pela farmacêutica Pfizer em agosto do ano passado, de enviar ao Brasil 70 milhões de doses do imunizante, das quais 1,5 milhão em dezembro e 1,5 em fevereiro deste ano. Na última quarta-feira, para espanto geral, o ministro Marcelo Queiroga alardeou a “antecipação” da chegada de 2 milhões de doses até junho.
A CPI da Covid-19 pode até trazer desconforto político, mas isso é pouco. Bolsonaro precisa ser incriminado judicialmente. Nem que sirva apenas como registro histórico, para que as próximas gerações, ao se debruçarem sobre este momento, saibam que o país contou com instituições determinadas a passar a limpo a atuação do presidente em meio ao morticínio de mais de 500 mil brasileiros.
Insisto, contudo, que o capitão não pode ser o único responsabilizado, ainda que sua incompetência, falta de empatia e rudeza nos empurrem para isso. Sobretudo porque seria o caminho mais conveniente para uma sociedade que, é preciso dizê-lo, jamais se comprometeu de verdade com os preceitos científicos.
Estudo recente publicado na prestigiosa revista Science apontou que o governo federal é o maior culpado por erros no enfrentamento à pandemia no Brasil. O trabalho elenca os fatores que levaram ao fracasso, partindo da desigualdade social, passando pela falta de testagem em massa e de bloqueios entre municípios e estados, chegando até a queda de braço entre o presidente e governadores. O diagnóstico é preciso, porém senti falta de menções a festas clandestinas e aglomerações de toda sorte.
Não trato aqui da enorme maioria dos brasileiros que simplesmente não pode se permitir ficar em casa se quiser ter o que comer. Falo daqueles que podiam e não ficaram. Que deveriam usar máscara e não usam. Que teriam como evitar aglomerações, mas escolheram não abrir mão do próprio prazer.
Bolsonaro pode ser o pior presidente possível à frente de uma nação como o Brasil em tempos de pandemia — e é —, mas nosso comportamento desde o início do flagelo não pode ser atribuído somente ao seu poder de persuasão.
Há um pouco de tudo na lista de motivos que nos levam a agir como agimos e não me atreverei a mergulhar em cada um deles. Grosso modo, como em tantas outras ocasiões, optamos por não abraçar uma causa coletiva. Preferimos administrar o risco de infecção como se fosse uma questão individual e vida que segue. Ou não.
A discussão sobre até que ponto o Estado pode intervir na vida das pessoas acabou envenenada pelo negacionismo dos fãs de Bolsonaro, mas seu mérito permanece intacto e dialoga com o momento atual. Não que nosso desprezo pelas normas recomendadas pelos especialistas tenha sido motivado por essa razão. Longe disso. Apenas é um ingrediente a mais no debate.
Não há dúvida sobre a responsabilidade do presidente da República nesta que de longe é a nossa maior tragédia em gerações. Ele tratou a pandemia com a mesma indolência com que ameaça a ordem democrática e precisa responder por isso, todavia não agiu sozinho.
Para além do fato de Bolsonaro ter sido eleito por quase 60 milhões de brasileiros, precisamos reconhecer nossa natural disposição para contornar problemas em vez de enfrentá-los e de terceirizar responsabilidades. Somos assim. E sabemos disso.
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