“Eu acho que em 1980 a eleição foi diferente. Ronald Reagan mudou o rumo do país de um jeito que Richard Nixon não mudou. Que Bill Clinton não mudou. Ele conseguiu fazer isso porque o país estava pronto. Ele entendeu o que as pessoas estavam querendo naquele momento”, declarou Barack Obama em 2008, durante sua primeira campanha presidencial.
Oito anos depois, ao ser questionado se Donald Trump havia capturado o espírito da época após ter vencido as primárias republicanas de forma avassaladora, o então ex-presidente opinou: “Penso que seja difícil argumentar que alguém tido por três quartos da população como desqualificado possa ter capturado o espírito do país. Vamos ver o que acontece”.
Junho chegava ao fim. Cerca de quatro meses depois, o mundo pôde ver o que aconteceu.
Em outubro de 2017, foi a vez de um líder europeu recém-eleito tratar do tema. Emmanuel Macron não pareceu otimista quanto às chances de um presidente sozinho mudar o curso da história: “Não acho que seja possível… sozinho, não. Só se você tiver entendido o espírito da época”.
Bem antes de Obama e Macron, Friedrich Hegel, filósofo alemão que consagrou o termo zeitgeist, via em Napoleão Bonaparte o represente legítimo dos pensamentos e anseios de sua geração.
A dois dias da eleição que decidirá o 46° presidente dos Estados Unidos, só há uma certeza: para além de um dos cargos mais emblemáticos do planeta, o espírito de nossa época está em jogo.
Trump ainda pode vencer, mas o atual cenário não encontra abrigo em comparações com a eleição passada, na qual ele derrotou Hillary Clinton.
Não bastassem as pesquisas, o ânimo dos democratas — que há dias e aos milhões votam antecipadamente —, e a necessidade de conseguir improváveis reviravoltas em estados-chave, Trump precisa contornar o estrago feito por um rival até o momento invencível, e que desde o início do ano ele tanto menosprezou: a Covid-19.
No futuro, caso a vitória de Joe Biden se confirme, dificilmente os livros de história deixarão de citar a pandemia como fator decisivo para o resultado desta eleição. E é justo que seja assim. O novo coronavírus desmontou o principal argumento de Trump pela reeleição, a economia, levando o país de uma situação de pleno emprego para uma crise de proporções impensáveis.
É preciso constatar, entretanto, que o presidente americano colaborou com o Sars-Cov-2. Por meio de um discurso negacionista, garantindo que a doença desapareceria por milagre, desdenhando da ciência e do uso de máscaras, Trump tem considerável responsabilidade pelas mais de duzentas mil mortes nos EUA.
Ainda pior: enquanto esnobava a doença em comícios, comparando-a a uma gripe, por trás das câmeras reconhecia seu poder devastador, como revelou Bob Woodward em livro recém-publicado.
Se acaso nada disso importar para os americanos, e o sistema eleitoral mais ilógico de que se tem notícia impuser uma surpresa sem precedentes à comunidade internacional, então teremos todos muito com o que nos preocupar.
Trump não pode ser responsabilizado pela dificuldade da esquerda em descer do salto e dialogar com quem não comunga de sua régua moral. Ele não determina aos italianos o que devem pensar sobre Matteo Salvini; aos franceses que apoiem Marine Le Pen ou aos ingleses que alimentem sentimentos antieuropeus.
Trump não põe fogo no Pantanal, não obriga Jair Bolsonaro a depreciar o sofrimento causado pela pandemia e a fazer gracejos homofóbicos.
Contudo ele representa a centelha deste que talvez seja o momento mais delicado na história recente das democracias.
Uma gestão Biden não tornará o mundo um lugar essencialmente diferente, mas a reeleição de Trump reforçará o atraso civilizatório que extravasou as fronteiras americanas e ressoou em países como o Brasil. É disso que se trata.
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