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Há quem questione o propósito do impeachment de Jair Bolsonaro. Há quem se apoie na Constituição para sustentar que o presidente deve concluir o mandato. Há até quem estabeleça comparação entre ele e o vice — Hamilton Mourão seria inteligente e, portanto, mais perigoso.

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Argumentar é sempre possível, negar os fatos é outra conversa.

Convém deixar de lado o paralelo entre o capitão e o general. Em dois anos na presidência, Bolsonaro já demonstrou habilidade para contornar crises adquirida em três décadas no parlamento. Mourão nem sequer é do ramo.

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Quanto à duração de um mandatário no cargo, a Carta que a determina é a mesma que prevê o seu afastamento por meio de um processo de natureza estritamente política.

Crimes de responsabilidade que fundamentem o impeachment de Bolsonaro não faltam. Sua permanência no comando do país impõe riscos à democracia, às instituições e à saúde dos brasileiros.

O STF foi ameaçado de maneira inequívoca em pelo menos duas ocasiões.

A primeira foi quando o então ministro Celso de Mello, relator do inquérito que investigava uma possível interferência de Bolsonaro na Polícia Federal, solicitou à Procuradoria-geral da República que se manifestasse sobre o pedido de partidos para que os celulares do presidente e de um de seus filhos, o vereador Carlos Bolsonaro, fossem apreendidos.

Por meio de nota pública, o ministro-chefe do GSI, general Augusto Heleno, afirmou que a hipótese era “inconcebível” e acenou com “consequências imprevisíveis para a estabilidade nacional”.

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Em outro momento, quando a Suprema Corte autorizou a operação da PF no inquérito que investigava a participação de blogueiros e aliados na disseminação de notícias falsas, Bolsonaro estrilou: “As coisas têm limite! Acabou, porra!”.

O caos promovido pelo governo é tamanho que a gravidade dos fatos se dilui ao longo do tempo. Em março de 2019, um duplo strike feriu os princípios da impessoalidade e do livre exercício dos poderes: primeiro o funcionário do Ibama que sete anos antes multara Bolsonaro por pesca ilegal foi exonerado, em seguida o presidente determinou que o Ministério da Defesa celebrasse o golpe de 1964.

Por falar em golpe, Jair antecipou que poderemos ter uma situação “igual ou pior” a do ataque encorajado por Donald Trump ao Capitólio, caso não tenhamos voto impresso em 2022. Uma fala impensável, não viesse de quem incentivou e prestigiou manifestações pedindo intervenção militar e um novo AI-5.

A sucessão de atitudes do presidente que ensejam o impeachment também inclui ameaças veladas a procuradores e de agressão física a repórteres. Vai de incentivos à desobediência civil a uma debacle jamais vista no meio ambiente — a qual compromete a imagem do Brasil no exterior e por tabela sua economia.

A perversão diante da pandemia, contudo, merece especial deferência. Extrapola o caráter político. Estabelece um patamar de indignidade que desde a reabertura democrática jamais havíamos testemunhado.

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Bolsonaro é incapaz de demonstrar empatia, nutre aversão pela ciência e prioriza o cálculo político enquanto o povo agoniza. Trata-se de um comportamento cruel, quiçá doentio, que não se resume aos habituais comentários odiosos.

Seu endosso a tratamentos sem respaldo científico, as críticas ao uso de máscaras, a incompetência para negociar o maior número possível de imunizantes e a demora para vacinar a população tornam o vírus ainda mais letal.

As condições para o impeachment de Bolsonaro não estão alinhadas e talvez isso nunca aconteça. O crescente clamor em torno do seu afastamento, todavia, não poderia estar mais respaldado.

Se a lista de evidências não convence, a constatação de que há um morticínio em curso deveria fazê-lo.