Dentre tantas declarações capazes de me perturbar desde que tomei conhecimento do incêndio no Centro de Treinamento Ninho do Urubu, a primeira foi de Patrícia Amorim, ex-presidente do Flamengo: “Foi uma fatalidade”.
Depois, com o passar das horas, somaram-se outras. E vinham tanto de dirigentes do clube quanto de comentaristas que, lamento dizer, não pareceram capazes de fazer análises isentas de sua paixão clubística.
Que fique claro, para dirimir quaisquer dúvidas: termos como “fatalidade” a gente usa para eventos como terremotos. Cabe falar em “acidente trágico” na hipótese de tsunami ou furacão. Quando dez crianças morrem por asfixia ou queimadas vivas, sem possibilidade de fugir, órfãs de socorro especializado ou sistema de alarme, o nome que se dá é outro.
Contudo, o meu desgosto não se deu apenas por conta da postura adotada pelos dirigentes do Flamengo ou de parte da imprensa esportiva. Muitos torcedores do time rubro-negro, mais do que eu gostaria de admitir, igualmente se esforçam para justificar o injustificável.
Hoje mesmo, sábado, houve uma espécie de abraço simbólico à Gávea. Mas por quê?, pergunto eu. A comoção eu compreendo perfeitamente pois ela também é minha. Só um absoluto sociopata não ficou abalado. Entretanto, se a Gávea, na representação do que seja o Flamengo, tem algum papel nessa história, certamente não é o de vítima. As vítimas, não custa lembrar, foram as crianças que perderam a vida sob a guarida do clube. Somente elas.
O que percebo é quase uma impossibilidade do flamenguista em separar o time de seus gestores. É como se existisse um temor coletivo de que a responsabilização desses pudesse macular o nome de uma instituição com quase 124 anos de existência.
Entendo perfeitamente a posição dos dirigentes do Flamengo. Devem imaginar, como se espera, que brevemente terão de prestar contas à Justiça. Explicar o porquê de os tais contêineres não terem sido aparelhados com detectores de fumaça, alarmes e vias de fuga alternativas em caso de emergência.
Também terão de justificar o motivo de terem alojado jovens atletas sem autorização, uma vez que o local onde o dormitório adaptado se encontrava fora protocolado como estacionamento. Sem falar nas 31 multas recebidas e ao que parece solenemente ignoradas, incluindo um pedido de interdição.
Da mesma forma, a prefeitura deve satisfações à sociedade. A começar pelo fato de ter permitido o funcionamento do CT mesmo após ela própria ter constatado as irregularidades e pedido pela sua interdição.
Há quem diga que no Brasil as coisas são assim mesmo. Que tudo se acomodará, como sempre se acomodou. E como culpá-los? Como, se há 6 anos, na Boate Kiss, quase 300 pessoas morreram e 700 ficaram feridas em mais um incêndio que poderia ter sido evitado e até hoje nem sequer houve julgamento?
Como, se acabamos de testemunhar outra “canelada” humana e ambiental repleta de digitais e mesmo assim nada indica que os altos escalões da Vale serão de fato responsabilizados?
Não resta dúvida, para ser um brasileiro completo, de cabo a rabo, o sujeito precisa cultivar uma boa dose de cinismo.
Certa vez, durante quiproquó recente no Supremo, o ministro Luís Roberto Barroso se saiu com uma expressão particular: “mal secreto”. Pois estou convencido que é disso que se trata. Que a nossa essência, como cidadãos, está de certa forma sequestrada por um mal secreto. Indolência, preguiça, camaradagem, bom senso, jeitinho. Nomes não faltam para esse encosto, mas, no fim das contas, mal é o que ele nos faz.
“Que torcida é essa?”, costumam cantar os flamenguistas no Maracanã, em um irônico autoelogio pela eletricidade que são capazes de gerar quando decidem empurrar o time dentro de campo. Pois ainda que seja injusto imputar-lhe tamanha responsabilidade, talvez venha a calhar que justo a maior torcida esteja envolvida nesse turbilhão de sentimentos. Ninguém será melhor para dar o exemplo.
Afinal, essa nossa mania de, cegos por paixões, absolver e até mesmo idolatrar os nossos algozes, aqueles que nos enganam, roubam e assassinam, já basta na política.