“Se não for para fazer diferente, é melhor nem ganhar.” A frase proferida por Jair Bolsonaro e boa parte do seu núcleo mais próximo ia ao encontro do zeitgeist anticorrupção. Associados a esse, a repulsa pelo sistema e o clamor entranhado na sociedade pela radicalização após anos sob o jugo da esquerda tornaram o bolsonarismo imbatível. Como já escrevi neste espaço, o atentado em Juiz de Fora apenas tornou impossível uma mudança que já se desenhava improvável no curso da eleição.
Entretanto, para além da cortina retórica erguida pelos chamados “bolsominions” e do palavrório destilado pelo próprio presidente eleito, só quem se deixou mesmerizar por completo não questionou o descompasso entre o sermão e a conduta histórica do novo guia.
Afinal, que antiesquerdismo absoluto era aquele vindo de alguém que trabalhou para a vitória de Ciro Gomes e depois votou em Lula nas eleições de 2002? Que gana era aquela contra “os vermelhos” vinda de alguém que chegou a tentar interferir a favor do comunista Aldo Rebelo para chefiar justo a Defesa? E que papo era aquele de candidatura anti-establishment proferido por um indivíduo que se mantém há três décadas na política, tendo aberto o caminho para os filhos e se filiado a partidos sabidamente íntimos de escândalos, como é o caso do PP?
Esses foram apenas alguns dos questionamentos naturais que surgiram durante a campanha, embora tenham sido atropelados pelo fanatismo. A união entre um economista liberal como Paulo Guedes e um sindicalista como Bolsonaro se mostrou no mínimo curiosa, porém não foi algo que ressoou negativamente na Faria Lima. Aliás, bem ao contrário.
E, então, eis que surge Fabrício de Querioz.
Confesso a minha ignorância durante as últimas semanas. De fato, não fui capaz de alcançar o porquê de o ex-assessor do deputado Flávio Bolsonaro ter optado pelo silêncio no caso envolvendo o depósito de R$ 24 mil na conta da futura primeira-dama e o fluxo para a sua própria de quase a totalidade dos salários de funcionários lotados no gabinete do futuro senador — alguns deles fantasmas.
Digo, em seu favor, além da popularidade ainda em alta da próxima administração, as várias ocorrências envolvendo cifras astronômicas descortinadas pela Lava-Jato nos últimos tempos favorece o aflorar de uma tradicional dose de cinismo presente em nossa sociedade.
Além disso, convenhamos, basta lembrar de Walderice Santos da Conceição, a “Wal do açaí”, para não se impressionar com esse tipo de situação envolvendo a família que comandará o país durante os próximos quatro anos.
Pois desde ontem à noite, em seguida à entrevista concedida ao SBT por Queiroz — vale lembrar que ele já havia deixado o Ministério Público esperando em duas ocasiões —, tudo ficou claro: quem argumenta “Sou um cara de negócios. Eu faço dinheiro, compro carro, revendo carro”, levado em contas as circunstâncias, não pode ser considerado uma pessoa exatamente brilhante.
Se a justificativa a ser apresentada durante todo esse tempo era a compra e revenda de automóveis, uma atividade regulada, que envolve registros e farta troca de documentação, talvez fosse melhor ficar calado. Agora caberá ao ex-assessor do deputado, logo senador e filho primogênito do presidente da República explicar não apenas como tantas negociações aconteceram em tão pouco tempo, mas também o fato de terem envolvido justamente funcionários do gabinete em questão.
Entendo perfeitamente as posições defensivas de muitos, como o futuro ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), general da reserva Augusto Heleno, e o próximo ministro-chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni. São legítimas. A partir desse momento, porém, cabe às instituições investigar a fundo todos os fatos, inclusive se houve ou não envolvimento de Flávio Bolsonaro no episódio.
Seja como for, seria de bom-tom se rasgassem de vez a lenda eleitoreira que tenta vender um séquito impoluto destinado a limpar o país de todos os males.
Essa já não cola mais.
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