“Lamentavelmente, no Brasil o voto não é ideológico. Lamentavelmente, as pessoas não votam partidariamente. E lamentavelmente você tem uma parte da sociedade que, pelo alto grau de empobrecimento, é conduzida a pensar pelo estômago e não pela cabeça.” A fala é de Lula, data do ano 2000 e escancara as diferenças entre a vida como ela é e como populistas gostariam que fosse.
Na época o líder petista acumulava derrotas na disputa pelo Planalto, incluindo duas ainda no primeiro turno para Fernando Henrique Cardoso. Lula criticava a falta de apego ideológico do povo, mas ao assumir o poder tratou logo de incrementar a política social iniciada pelo PSDB. A julgar pelas seguidas vitórias do PT a partir daquele momento, parece ter entendido que pensar pelo estômago e pela cabeça nunca foram excludentes, muito pelo contrário.
A realidade — e ela vale tanto para a esquerda quanto para a direita, não poupa o lulismo nem o bolsonarismo — é que o cidadão comum não dá a mínima para a “guerra cultural”. O poder de alcance das redes sociais e do WhatsApp é inegável, mas quem passa horas do dia apertado no trem, no ônibus e no metrô não tem tempo para debater fascismo, comunismo e kit gay. Está mais preocupado em arrumar trabalho, pagar boletos e abastecer a geladeira.
Corrupção sempre existiu, porém desde que as necessidades básicas do povo foram atendidas jamais derrubou governante algum. Essa é a verdade, ainda que a malta fanática pelo capitão se empenhe em vender o brasileiro como um eterno coroinha recém-saído do catecismo, tão ilibado que não tolera a mínima falcatrua.
Não foi por causa da corrupção desenfreada dos governos petistas que Dilma Rousseff caiu, e sim porque a vida das pessoas piorou. Foi pela sensação de estabilidade que se tinha quando o mensalão ganhou a capa dos jornais que Lula continuou presidente, não por um erro de cálculo da oposição ao não pedir o seu impeachment.
Aproveitando o ensejo da patuscada encomendada por George W. Bush, Barack Obama e Donald Trump, ao fim das contas embalada por Joe Biden, a mesma dose de desapego ideológico se vê aqui, nos Estados Unidos: as imagens vindas de Cabul são terríveis, contudo a imensa maioria da população continua apoiando a retirada das tropas porque ela significa a volta para casa de seus amigos e familiares.
Aos olhos do americano médio, questões que possam afetar diretamente sua vida não se comparam em importância com agendas amalucadas do QAnon e protestos da esquerda contra o embargo a Cuba.
“O que estamos vendo no Brasil hoje é uma caçada a ideias conservadoras”, lamentou o senador governista Eduardo Girão (Podemos-CE) na última quinta-feira. Trata-se de uma falácia que não fica de pé diante dos fatos, mas que ao mesmo tempo não deixa de jogar luz sobre uma questão compreensivelmente ignorada por cruzados em ambos os lados do espectro político: quem se interessa por disputa ideológica?
No fim das contas, debate ideológico não passa de fetiche elitista. Pilates retórico de alienados sem preocupações reais. Esses, de tão ensimesmados em suas bolhas, veem suas causas diletas como determinantes para o futuro do país.
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