Remonta à época em que Ademar de Barros estava à frente de São Paulo o surgimento da expressão “rouba, mas faz”. Mais de meio século se passou e coube justo a uma patota eleita com o discurso da nova política reformar o dito. Sob os cuidados da administração Bolsonaro, enquanto espreitamos a marca de seiscentas mil vidas perdidas, somos apresentados ao “rouba, mas não faz”.
O governo brasileiro aceitou bovinamente entubar um prejuízo de R$ 538 milhões quando pagou U$15 por dose do imunizante indiano Covaxin, sendo que no início das negociações o preço estipulado era de U$10 por unidade. Ainda pior: em novembro do ano passado, o fabricante da vacina, laboratório Bharat Biotech, não só informou o preço de dez dólares como acenou com um desconto no valor final, a depender do tamanho da encomenda.
Outro detalhe que dá contornos de maracutaia ao trato, para além da inexplicável necessidade de um intermediador durante as conversas — a Precisa Medicamentos —, é o tempo de duração: 3 meses, enquanto com a Pfizer foram necessários 11.
O Tribunal de Contas da União (TCU) denominou a inexistência de tentativa de negociação por parte do governo brasileiro diante da mudança repentina de preço — 50% mais alto — de “possível impropriedade”. A notícia foi trazida no Estadão pelos repórteres Bruno Pires e Julia Affonso.
A decisão da ministra do Supremo Tribunal Federal (STF) de autorizar abertura de inquérito para apurar a conduta do presidente no episódio é bem-vinda porque segue os trâmites estipulados pelo estado de direito, mas as constantes mudanças de versões do governo e a incapacidade do próprio Bolsonaro em negar o encontro com o deputado Luis Miranda apontam para o crime de prevaricação.
O escândalo envolvendo a compra da Covaxin enoja não só pela falcatrua em si, mas porque poderia ter atenuado a maior crise sanitária na história do país, que vem despedaçando centenas de milhares de famílias. Não é o único caso de corrupção no governo Bolsonaro.
Via Elio Gaspari e o repórter Aguirre Talento, hoje sabemos que a Controladoria-Geral da União pinçou uma tentativa de negociata em um edital do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação: a compra no valor de R$ 3 bilhões em equipamentos eletrônicos para a rede pública de ensino. Em alguns casos, uma escola sozinha receberia mais de trinta mil laptops.
O edital foi suspenso e posteriormente cancelado, mas até hoje não se sabe quem seriam os beneficiados na tramoia, e o governo mantém silêncio sobre o caso.
O ex-ministro Ricardo Salles, até há pouco tempo atrás elogiado por Jair Bolsonaro, é outro exemplo da barafunda ética em que a administração federal está metida: é investigado pela Polícia Federal, que vê “fortes indícios” de seu envolvimento em um esquema de corrupção para exportação ilegal de madeira. O agora afastado presidente do Ibama, Eduardo Bim, já está enquadrado nos crimes de facilitação ao contrabando e advocacia administrativa.
Desde o início de seu mandato, a lista de momentos em que Bolsonaro jactou-se do poder emprestado a ele pelo cargo que ocupa é longa. Por isso, o descompasso com o choramingo autopiedoso do início da semana, quando afirmou não ter como saber o que acontece nos ministérios, só comoveu seus apoiadores.
Defender a tese de que o presidente seria vítima do sistema, sua administração refém de uma ignóbil entidade chamada Centrão, seria ignorar que o próprio Jair sempre fez parte desse mesmíssimo aparato, que oportunamente amaldiçoou durante eleição para se travestir de salvador da pátria.
A dificuldade em liderar uma gestão pautada pela hombridade — deixemos a competência de lado por um instante — tem somente a ver com a rudeza moral e a natureza de político rastaquera que sempre foi. Inesperado seria se, cumprindo a principal promessa de sua campanha, liderasse uma gestão proba, avessa a facilidades, toma lá dá cá e maracutaias de toda sorte.
Ao fim e ao cabo, o governo Bolsonaro conseguiu a proeza de impor o cenário mais trágico possível aos brasileiros, mesmo considerando as piores administrações que já tivemos: incompetência gerencial, corrupção militarizada e morticínio como estratégia.
Jair Bolsonaro pode perder em 2022 ou cair antes, mas tanto um destino quanto o outro não serão suficientes para que se faça justiça.
O presidente precisa responder pelos crimes que cometeu. O de prevaricação pode não ser chamativo, mas já é um começo.
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