Aconteceu durante um almoço. Estávamos juntos eu, meus pais e meu irmão no antigo Barbas, restaurante de meu tio Nelson, na rua Álvaro Ramos, em Botafogo. Não me esqueço da cena. A casa está lá até hoje, mas, dizem, virou estúdio de música. Pecado. O Barbas não era chique, e nunca desejou sê-lo. No cardápio, o cliente podia encontrar bife a cavalo, estrogonofe com batatas coradas, picadinho e, aos domingos, um cozido imbatível. A simples lembrança da sobremesa campeã de pedidos, produzida diariamente e às dúzias por minha avó Elza, é de aguar: pudim de leite.
Divago, porém. Vamos ao que interessa. Estávamos todos lá quando o tio Nelsinho chegou, interessado em tomar um chope ou dois antes de rumar para o Maracanã. Vale dizer, as minhas primeiras idas aos campos de futebol se deram por conta dele. Foi graças a meu tio que aprendi a frequentar a arquibancada e, claro, me apaixonei pelo Fluminense. Quando ele falava, portanto, eu prestava atenção.
Daquela vez, contudo, a conversa foi rápida: em poucos dias o Flamengo jogaria contra o Peñarol. A mesa inteira ficou chocada quando ele anunciou que torceria furiosamente pelos uruguaios.
Sim, eu também fiquei chocado.
Anos se passaram até que eu entendesse o sentimento por trás daquela fala. Hoje posso afirmar: não apenas o compreendo, mas dele comungo. E não só eu, mas todos que têm um time de coração.
A arrogância comum aos torcedores de times de massa não teria como poupar os flamenguistas. Não vai aqui qualquer tentativa de crítica, é apenas uma constatação. Falo de ouvir dizer, mas deve ser inebriante fazer parte da maioria. Tanto que os rubro-negros têm o hábito de argumentar que os torcedores rivais gostam mais de torcer contra o Flamengo do que por seus próprios clubes.
Trata-se de uma provocação boa para mesa de bar, mas que não fica de pé em face a rivalidades seculares. E é bom que seja assim.
Foi saudável, por exemplo, quando se formou certa ‘Fla-Madrid’ em 1998, por conta da final do Mundial de Clubes entre o Vasco da Gama e o Real Madrid. Da mesma forma, seguiu o curso natural das coisas quando ‘Fla-Boca’ e ‘Fla-LDU’ foram criadas para secar o Fluminense na reta final da Libertadores, em 2008.
Não há problema algum em desejar que o rival fracasse. Problema seria um palmeirense torcer para que o Corinthians conquistasse um campeonato, ou se um colorado fizesse pensamento positivo pelo Grêmio, ou ainda que um atleticano ansiasse por gols do Cruzeiro.
Sei bem, em épocas extremadas como a que vivemos, as chances de uma mensagem ser deturpada ou de seu contraponto descambar para a utopia não são pequenas. Por isso me antecipo: não se trata aqui de estabelecer uma guerra contra os flamenguistas, em compreensível estado de êxtase. Por outro lado, tampouco faz sentido comprar patacoadas como “o Flamengo é o Brasil na Libertadores”.
Se a visão de mundo dos brutamontes intelectuais, incapazes de admirar um bom jogo ou de reconhecer os méritos de um rival é danosa para além dos campos de futebol, igualmente presta um desserviço o discurso paternalista e infantilizador, que busca impor uma atmosfera olímpica, emocionalmente asséptica, estranha a um esporte capaz de cultivar paixões e rivalidades ao longo de gerações.
Não, o Flamengo não é o Brasil na Libertadores. O Flamengo, mais do que nunca, é o Flamengo. O resultado dessa evidência, por conseguinte, não poderia ser outro: todos os demais, no próximo sábado, serão Club Atlético River Plate.
Espero que Enzo Pérez, Nacho Fernández, Palacios e cia não me decepcionem.
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