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– Oi.
- Tá em casa?
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– Sim?
– Pode falar agora?
São dessas duas formas que começam as conversas telefônicas nesses nossos dias. Note que a pessoa que chama supõe que vai incomodar e por isso vai logo perguntando: “Pode falar agora?” “Tá em casa?”.
Esta pessoa “ousou” fazer uma chamada de voz, mas sabe que este tipo de contato está totalmente fora de moda. Aliás, é provável que quem telefona seja uma pessoa com, no mínimo, uns 40 anos. Chamadas de voz são altamente impopulares atualmente e há toda uma geração sem prática em falar ao celular. Em compensação, digitam mensagens com habilidade de fazer inveja a um pianista.
Telefonar para alguém se tornou um evento. É bom ter uma boa razão para fazer o aparelho do amigo tocar, interrompendo seja lá o que ele estiver fazendo para conversar com você agora. Agora! Este é o cerne da questão. Nas outras formas de contato que temos à disposição – e que são muitas – a pessoa contactada pode escolher se responde agora ou não. Pode fingir que não viu a mensagem e deixar para depois. Pode deixar para o dia de São Nunca. Pode responder até com um áudio, veja só! A questão é o tempo e a atenção. Neste caso, tempo e atenção são uma coisa só. Quem chama quer nossa atenção e isso vai tomar nosso tempo. Por isso, agora que conhecemos outras formas de comunicação em que permanecemos no controle do tempo, como as mensagens de áudio e de texto, preferimos todas as outras opções ao telefonema tradicional.
A nossa atenção é o tesouro que todos querem e que distribuímos de forma caótica. Todas as mídias sociais, os serviços de streaming, os jogos digitais e as mídias tradicionais querem nossa atenção. Os bancos que nos oferecem empréstimos e cartões querem nossa atenção. O comércio quer nossa atenção e por isso faz posts cada vez mais amigáveis e convidativos. As pessoas de má fé querem nossa atenção e capricham nas fake News. Amigos, colegas e parentes nos querem adicionar a grupos reunidos sob nomes criativos. Acossados por tantos interesses, acabamos fugindo de quem? Do amigo que quer nossa atenção ao telefone porque ainda prefere essa forma retrógada de contato.
Estamos sem jogo de cintura para conversar em chamadas de voz. Esse tipo de contato traz duas variáveis que tememos não controlar. A primeira é: quanto tempo vai demorar a ligação? Quem liga tem a prerrogativa de encerrar a conversa no momento que quiser, não é? Pelo menos era assim na época do telefone fixo. Ou há novas regras em vigor? Por que haveria novas regras para um hábito que está desaparecendo? Não há mais regra nenhuma!
Outra variável é o trato, a emoção que colocamos no contato. “Olá, que surpresa!” – diremos em tom alegre. Ou ficamos intimidados e falaremos baixinho? É mais difícil esconder o que sentimos se a outra pessoa ouve nossa voz. O que temos para esconder? Talvez o fato de que não estamos com vontade de conversar agora…
Que contraste com as mensagens de texto, em que a maioria das pessoas nem cumprimenta ao início da conversa, vai direto ao ponto e interrompe a conversa quando se distrai com outra coisa! Aliás, essa extrema informalidade das mensagens de texto é absurdamente improdutiva e desagradável. Só eu que penso assim? Veja: o interlocutor escreve algo e vai tomar um café; do lado de cá, você não sabe se a conversa acabou e, sem saber se espera a continuação da conversa ou não, vai passear com o cachorro; aí seu interlocutor escreve novamente e você não responde. Uma conversa que podia durar dois minutos se arrasta por horas.
Nas mensagens de texto a expressão da emoção é gráfica, prêt-à-porter. Apelamos para carinhas amarelas e sorridentes e outras imagens animadas ou estáticas que nos ajudam a dizer como nos sentimos, já que o texto em si tende a indicar frieza. Essas imagens divertidas podem não ser muito exatas, mas ajudam. É isso ou mandar um áudio (que a maioria das pessoas detesta ouvir) ou tentar ser preciso em um meio feito para mensagens cifradas e ridiculamente curtas.
Já na ligação telefônica, aquela que começa com “alô, você pode falar?”, tudo revela nossa alma. Os silêncios do interlocutor são perturbadores assim como a emoção na voz de quem liga. “Tua voz tá diferente. Você tá bem?” – típica frase dos velhos tempos em que o sonho do brasileiro era comprar uma linha telefônica e que os adolescentes invejavam os personagens de filme americano que tinham um aparelho no próprio quarto. País desenvolvido é outra coisa, pensávamos nós quando a mocinha se jogava na cama e pegava o aparelho cor-de-rosa para ligar para a amiga.
A chamada telefônica está reservada agora para pessoas muito íntimas, como irmãos, e avisos dramáticos. Quando a gente pega o celular para falar com alguém é coisa séria.
Ninguém mais espera o próximo telefonema da pessoa amada, aquele que foi descrito com graça por Roland Barthes no livro Fragmentos de um Discurso Amoroso:
“A espera por um telefone é entremeada por pequenas proibições: eu me impeço de sair da sala, de ir ao banheiro, até mesmo de ligar (para não ocupar o aparelho); entro em pânico ao pensar que logo terei que sair, arriscando perder a chamada abençoada”.
Era assim o discurso amoroso analógico. Não mais. Agora a chamada de voz vem precedida de uma mensagem de texto: “pode falar agora?” A tensão continua a mesma, mas levamos o aparelho conosco para todo lugar e nosso ser amado só não nos alcança se não quiser (junto com essa facilidade veio o desinteresse pela voz humana e o discurso amoroso é todo digitado em intermináveis conversas monossilábicas).
Culpo o uso comercial das chamadas telefônicas por boa parte da aversão que elas hoje nos causam. As empresas incomodaram os incautos que ainda atendiam o telefone com a oferta de serviços que eles não queriam. Agora, ao contrário, substituem todo contato telefônico por assistentes virtuais de voz doce e mecânica que dizem coisas como “disque 1 se já é cliente”. Nossa necessidade se encaixa sempre em “nenhum das opções” ou “para falar com um dos nossos assistentes”, mas as empresas fazem o que podem para não nos ouvir, reforçando nossa antipatia pelas chamadas de voz.
Os tais assistentes virtuais são altamente ineficientes. O que funciona é a pessoa do outro lado da linha que se dispõe a resolver nosso problema (quando finalmente conseguimos alcançá-la) ainda que ela esteja a centenas de quilômetros de distância. As pessoas que me atendem quando tenho problema no cartão de crédito tem um lindo sotaque que, agora eu sei, é de Natal, onde fica o call-center. Estão longe, mas são humanos a quem posso perguntar como está o clima por lá. Não faz parte do protocolo de atendimento, mas elas nunca se negam a me responder. Aí, sim, experimento de novo aquele encanto da chamada telefônica que nos faz sentir que estamos em contato de verdade com alguém que está a “longa distância”. O contato é real, real time, voz humana, tecnologia antiga: uma delícia.