Ilustração: Felipe Lima| Foto:

Ele não é o primeiro cachorro a viver aqui em casa, mas é o único que chegou por conta própria. Me seguiu portão adentro e, tal como na música, “antes que eu dissesse não, se instalou feito um posseiro dentro do meu coração”. Culpa daqueles olhos redondos como duas jabuticabas. Resistir a tanta disposição para amar, quem há de?

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É um vistoso vira-lata, quase todo preto, pelo curto, pequeno. Como ele, há muitos outros vagueando pelas ruas como lobos solitários. Acredito que se a gente olhar de perto, vai encontrar também nos tais lobos solitários a característica mais impressionante do meu cachorro: o olhar afetuoso. Meu vira-lata olha para nós, moradores da casa, com um olhar de puro amor. Ele é uma máquina de afeto e de curiosidade. Foi isso que a evolução da espécie fez dele: um ser que existe para adorar seu companheiro, o ser humano. Os cães, mais que qualquer outro animal, se relacionam bem com a espécie humana. Eles não apenas convivem conosco, mas sim se relacionam mesmo, como amigos.

Ao serem domesticados, o que teria acontecido há pelo menos 15 mil anos, os cães se tornaram muito dependentes de nós. Meu vira-lata não é bobo: sabe que eu lhe forneço alimento e abrigo. Pelo jeito sabe também (deve estar registrado em um cromossomo) que eu não resisto àquela alegria que ele demonstra ao me ver e – principalmente – àquele olhar. Ah, aquele olhar que é pura estima!

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Quando falo em cromossomo, não exagero. Segundo a revista Nature, cientistas que compararam o genoma dos cachorros com o dos lobos (de quem os cães descendem) encontraram lá razão de sobra para os primeiros serem amigáveis. A diferença entre lobos e cães estaria nas partes do cérebro que influenciam na sociabilidade.

O que os cientistas não encontraram ainda é uma razão para a existência de tantas raças de cães. Nenhum outro animal tem tanta variação de características básicas como peso e altura. Por enquanto ainda vale a explicação de que as raças são uma invenção do ser humano, que manipula os cães para conseguir o efeito estético desejado, como orelhas compridas e moles, pelo longo, perninhas curtas, pele enrugada, nariz achatado. O cão de raça é um capricho humano e paga caro por isso. Tem doenças e desconfortos (como a dificuldade para respirar dos buldogues e pugs) que um vira-lata nunca vai conhecer. É que o vira-lata é o resultado da evolução da espécie. É um sobrevivente – na selva (que pode ser a selva de asfalto), só os mais adaptados sobrevivem.

Sempre me desagradou ver pessoas que humanizam demais os cachorros, que se referem a eles como filhos, por exemplo. Lendo sobre os vestígios mais antigos da nossa relação com eles, descubro que essa humanização dos cães não é um fenômeno recente. Povos da Antiguidade tratavam seus cachorros como um igual, fazendo para eles os mesmos rituais funerários que faziam para os membros da família. Talvez isso se deva ao olhar doce e comunicativo, à insistência em permanecer ao lado, em mostrar afeto. Como Argos, o cachorro que esperou 20 anos por Ulisses e, ao reencontrá-lo, finalmente morreu, meu vira-lata pula para comemorar minha chegada como se, cada tarde, eu voltasse de uma odisseia.