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Marleth Silva

Marleth Silva

A pátria é uma sina terrível

Há 25 anos, o escritor João Silvério Trevisan lançava seu livro Ana em Veneza, que havia lhe exigido quatro anos de trabalho. A obra foi bem recebida pela crítica, vendeu bem e cumpriu seu destino de literatura brasileira: com as primeiras edições esgotadas, não ganha reedições há muito tempo e por isso só pode ser encontrada em sebos. Uma tristeza. Ana em Veneza traz o capítulo mais bonito e brasileiro que encontrei em um livro de autor nacional.

A menina de 6 anos Julia da Silva Bruhns vive o dia que marcará para sempre sua história e, parece, a de seus filhos e netos. É seu último dia no paraíso. O paraíso de seus primeiros anos passados em uma fazenda em Paraty, de frente para o Atlântico. Na manhã seguinte, a família Bruhns parte para a Europa. Consciente da separação, Julia observa tudo com aquele olhar que tem o poder de revelar o sublime – o olhar da última vez. O passeio de Julia pelo seu quintal é como uma odisseia pelas alegrias da infância. Mas também é – e isso me impressionou muito – como uma viagem no tempo para nós, leitores do século 21.

Os trabalhadores da fazenda são negros escravizados e são eles que a menina vai encontrando enquanto caminha, desde os amiguinhos com quem brinca até as mulheres que preparam os alimentos. O clima é doméstico, carinhoso e triste. Muito brasileiro e muito estrangeiro. Aqueles negros usam vocabulário africano, cozinham e se vestem como os costumes de suas terras. São tão estrangeiros quanto o pai alemão de Julia. Apenas chegaram ao Brasil em circunstâncias diferentes. Em outros momentos, Trevisan constrói novas cenas em que a africanidade dos escravizados fica patente e isso nos dá uma ideia do que era aquele Brasil em que culturas muito diferentes se acotovelavam nas ruas, nas cozinhas, nos quintais. Era uma Babel que não queria ser Babel.

Mas, voltando ao passeio de Julia da Silva Bruhns, a menina segue em desabalada correria pela propriedade, querendo viver tudo uma última vez e nos mostrando como era uma fazenda de café e cana no Brasil do século 19. Atrás dela vai sua mucama, a escrava Ana, trazida da África quando criança e comprada como um presente para a mãe de Julia, agora falecida.

Naquela noite, haverá um jantar de despedida para os amigos do senhor Bruhns. Uma ceia na casa da família, já vazia de móveis. A refeição é servida em porcelanas europeias e acompanhada por vinhos também europeus. Mas o que se come é um banquete com os frutos da terra e doces preparados pelas negras: compotas de frutas, cocada e quitutes das antigas, que eu nunca vi, mas que fiquei sonhando em provar.

Na manhã seguinte, o fazendeiro alemão embarca seus filhos para a Europa e, para cuidar deles, leva Ana, a jovem escrava.

Bruhns instala os filhos na cidade de sua família, Lübeck, mas volta logo para o Brasil. Ele próprio não se adaptaria mais à Europa. Teve o bom senso de trazer Ana de volta. A menina Julia fica com a avó, que a proíbe de falar português. Adulta, ela se tornará a mulher mais bonita de Lübeck, dona de uma beleza exótica para os padrões locais e de uma personalidade também exótica, extravagante. Casada com um comerciante rico da cidade, tornou-se Julia Mann e teve cinco filhos, entre eles os escritores Heinrich e Thomas Mann, este último ganhador do Nobel. Biógrafos da família Mann, que inclui os netos de Julia e também escritores, Erika, Klaus e Golo, mencionam a condição de eterna estrangeira da brasileira como influência fundamental na vida e na obra de todos eles.

João Silvério Trevisan criou outro destino para Ana. No livro, em vez de voltar para o Brasil, ela fica na Alemanha, onde tem muito mais dificuldade que sua “patroazinha” para se adaptar e passar despercebida. Afinal, é negra, analfabeta e sozinha. Conheceremos as aventuras e desventuras de Ana quando ela, em Veneza, encontrar outro personagem que Trevisan trouxe do quase esquecimento, Alberto Nepomuceno, o cearense que se empenhou para criar uma música brasileira e com isso abriu caminho para Heitor Villa-Lobos, que faria o mesmo, com mais reconhecimento.

Na criação dos personagens Julia Mann e Alberto Nepomuceno, Trevisan pode se basear em registros deixados por eles. Julia publicou um livro de memórias da infância e Nepomuceno deixou anotações. No mais, como ele explica em uma nota, essas pessoas reais se tornaram personagens de ficção. O resultado é impressionante.

Trevisan, que em outros livros sempre se arrisca em experiências literárias novas, constrói diante de nossos olhos, com muita sutileza, o retrato de um país que ainda se formava e que se dividia entre duas imagens de si mesmo: uma, negativa, era a do país grosseiro e selvagem em eterna comparação com a civilizada Europa; outra, positiva, é a da terra das possibilidades que oferece muita matéria-prima para grandes obras. Nepomuceno procura a matéria-prima cultural, que é a música e a natureza brasileira, para ser a base de suas composições. O pai de Julia Mann buscava a riqueza da terra. Julia parece ter passado o resto da vida buscando uma vida que se parecesse com sua infância, que foi livre e rica em experiências sensoriais.

Quando Nepomuceno encontra Ana em Veneza (Julia e seu filho Thomas Mann estão lá também, mas na posição de coadjuvantes), o Brasil é outro. Tornou-se uma república e a escravidão acabou. Ana não sabia nada disso. Envelhecera no ambiente europeu para o qual o Brasil era uma fantasia distante com a qual ninguém se importava.

Outro prazer que o livro nos traz é a presença de personagens reais e hoje pouco lembrados, os quais, eu suponho, Trevisan foi encontrando ao longo de suas pesquisas: o castrato Domenico Mustafá (que tem uma voz que nós nunca saberemos como é); Carlos Gomes; a milionária herdeira Nicota Haritoff (a família tinha mais de 50 fazendas de café); o Club Beethoven, no Rio de Janeiro, onde Machado de Assis trabalhava como bibliotecário; o filósofo mulato Tobias Barreto. Cada um deles renderia outro livro. E por que ler sobre o passado deste “país infantil, onde não se leva nada a sério e a praga da conciliação é endêmica”? Porque, citando o mesmo personagem, Alberto Nepomuceno: “a Pátria é uma terrível sina: além do risco de arcar com o destino individual, cada um de nós é obrigado a arcar com o destino da nação, que já tem uma longa história antes de nós, cheia de percalços e vícios que assaltam-nos sem clemência, impondo seus parâmetros e fazendo perguntas que não sabemos responder”.

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