Acordei esta madrugada com o som de água correndo lá no alto, uma enxurrada sobre a minha cabeça, um rio voador. Isso acontece quando o abastecimento é retomado e enche a caixa d’água que está colocada entre o teto e o telhado, perto do meu quarto.
Não é suave como o ruído de um córrego ou da chuva sobre o telhado e ainda assim é um som tranquilizador: habemus aqua!
Instigada pelo racionamento prolongado, venho pensando sobre a relação que mantemos com a água potável, tratada e encanada. A primeira conclusão a que cheguei é que, mesmo com racionamento e notícias de estiagem, quase ninguém modifica de fato seus hábitos de consumo. Fazer faxina é sagrado. Banho diário é sagrado (para algumas pessoas, dois por dia). Lavar muita roupa é sagrado. Essa resistência a adotar hábitos mais comedidos está relacionada com o orgulho que o brasileiro tem do seu padrão de higiene pessoal e domiciliar. Nosso capricho se baseia na abundância – abundância de água e de mão de obra barata para fazer faxina. Com esses dois ingredientes à disposição, nos esbaldamos.
O zum-zum-zum de uma máquina carregada de roupa é música para os nossos ouvidos. Talvez um ritual de vingança em nome dos antepassados que bateram panos na beira do rio? E tem o banho diário. É tão absoluta nossa crença na necessidade de entrar embaixo do chuveiro todos os dias que não ocorre a ninguém expor dúvidas sobre a necessidade dessa prática. Enquanto isso, nos sites de notícias estrangeiros pipocam reportagens sobre a mudança de costume durante a pandemia: banho dia sim e dia não. Seguem-se entrevistas com médicos afirmando que, se lavar a mão é fundamental, o resto do corpo não exige tanta água e muito menos sabonete, além de depoimentos de cidadãos que assumiram que só fazem contato com a água em dias ímpares. Por si só, o fato de europeus e americanos se disporem a colocar o banho em questão revela uma abertura para o assunto que nós não temos. No Brasil, o banho diário é virtude e o CC (cheiro corporal) é um tabu moral e olfativo.
Tem havido empenho por parte de alguns bem-intencionados em tentar o reaproveitamento da água da chuva e da máquina de lavar roupa. Mas ainda não falamos em mudanças na forma como usamos a água. Limpar a casa continua a ser sinônimo de muita torneira aberta. Morei na Inglaterra e posso testemunhar que lá não se usa água corrente para lavar louça. Tudo é colocado de molho com água quente e um tiquinho de detergente e, em seguida, esfregado com esponja ou escova. O que vem a seguir varia de casa para casa: alguns jogam a água com sabão e substituem por água limpa e a louça sai dali direto para o escorredor. Outros pulam o enxague. Acredite-me: em muitos lares ingleses, não se enxagua louça. Bizarro, sim, mas parece que ninguém morre por isso.
Se hoje estamos convivendo com racionamento de água é porque enfrentamos há muito tempo uma estiagem brava. E aí chego a minha segunda observação: a maioria não percebe a ausência de chuvas. Quando chove, é impossível não notar a água que cai. Mas se não chover 60 dias seguidos, ninguém percebe, à exceção dos que cultivam jardins e hortas. Suponho que seja assim porque a chuva perturba o nosso ir e vir. A ponto de imaginarmos que a normalidade se constitui de dias secos e que os dias de chuva são excepcionais.
Errado. No Paraná, em um ano padrão, cai alguma água do céu em 116 dias, em média. Assim mesmo: um dia com alguma precipitação pluviométrica, que pode ser uma garoa, e dois dias secos. É com base nesse “normal” que a agricultura foi organizada e que o sistema de saneamento foi projetado. Mas desde 2018 a chuva escasseou até chegar ao quadro atual de estiagem e racionamento de água. Ainda assim, um bom “piá de prédio” continua dizendo depois de um único dia chuvoso: “até que enfim parou de chover” e “será que agora o racionamento acaba?”
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