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Com velhos livros e novas abelhas vivemos bem, obrigada

Arte: Felipe Lima (Foto: )

Tiro da estante minha velha edição de Luz e Sombra, da Senhora Leandro Dupré. Quando comprei o livro em um sebo há uns 30 anos, alguém me disse que a autora assinava com o nome 0800do marido por causa do machismo de sua época. Parece que não é bem essa a explicação. Além de que era comum escritores usarem pseudônimo nos anos 40, Maria José Dupré temia se expor através dos textos. Se era por insegurança ou por conservadorismo, não sei. Quem sugeriu que adotasse esse estranho nom de plume foi o próprio Leandro, o marido. “Iremos juntos para o sucesso ou para o fracasso…”, teria dito.

Antes que pensemos que o senhor Dupré era um aproveitador vaidoso, registre-se que vinha dele o incentivo para Maria José publicar seus contos e romances, que ele admirava. Isso está registrado nas memórias dela (Os Caminhos, esgotado).

Maria José Dupré também é autora de Éramos Seis e vários livros infanto-juvenis. Era de família paulista, mas a fazenda onde nasceu está no município de Ribeirão Claro, naquela região do Paraná que chamamos de Norte Pioneiro.

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A minha edição de Luz e Sombra é de 1947 e está se desmanchando. Precisa de restauro. O livro começa assim: “Impossível voltar ao passado: é como uma cortina que se fecha e nos separa do que ficou para trás.” Ironicamente, não é nem essa frase de abertura nem os 71 anos do livro, mas um detalhe, que me evoca o passado: o endereço da Editora Brasiliense, publicado nas orelhas. “Rua Barão de Itapetininga, 93 – São Paulo”.

Imagino a seguinte situação absurda: eu escrevo uma carta e endereço ao proprietário e editor da Brasiliense, o historiador Caio Prado Junior. O envelope postado nos Correios de Santa Felicidade chega às mãos dele, na Rua Barão de Itapetininga de 1947, atravessando o espaço e o tempo.

Será que Caio Prado Junior lamentará saber que a senhora Dupré anda esquecida? Ou ficará feliz em descobrir que alguém preserva um livro de sua (então) jovem Brasiliense?

“Que bobagem!” – me dirá a senhora Leandro Dupré. “Você não leu o que eu escrevi? É impossível voltar ao passado.”

Discordarei. A senhora, dona Maria José, é de uma época em que não se falava de física quântica, em que não se discutia o tecido do espaço-tempo. Stephen Hawking era um garotinho de 5 anos quando a Brasiliense publicou Luz e Sombra! Tudo isso para dizer que não temos certeza de mais nada, dona Maria José. Especialmente do futuro, o que admito ser um tanto assustador. Da minha parte, sentadinha aqui na minha sala, observada por um gato e por um cachorro que não desgrudam de mim, sei que sou incapaz de ver o futuro, mas não o passado. Um passado recriado, claro, mas ainda assim rico. As pistas que vocês nos deixaram estão por toda parte. Veja seu livro, por exemplo. Não lembro mais da história. Mas acredito que algo dele ficou, até me formou, porque apreciei a leitura. Disso me recordo bem. E aquele endereço que a Brasiliense orgulhosamente estampou com insistência na frente e no verso parece indicar não somente um ponto geográfico no centro de São Paulo, mas uma referência sobre outras vidas escondidas atrás da cortina.

Vou folhear seu livro, Maria José, e espiar todos vocês, mulheres brasileiras, intelectuais paulistas, maridos e esposas, filhas obedientes, negros saídos da escravidão, mas não da senzala. Entre você e eu, o livro é a cortina que posso abrir para ver o passado ou manter fechada dentro desse papel que se desmancha, esquecido na estante.

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Dois leitores, Iris Bigarella e José Álvaro Carneiro, me escreveram após ler meu texto de março em que eu falava do silêncio dos bosques franceses após o desaparecimento de um terço de todas as aves que gorjeavam por lá. Os dois me recomendaram a leitura de um mesmo título, Primavera Silenciosa, de Rachel Carson. Trata-se de um livro de 1962, que alerta para o efeito dos pesticidas sobre pássaros e insetos e, consequentemente, sobre todos os seres vivos. Primavera Silenciosa deu o pontapé inicial no movimento ambientalista e Rachel Carson, que já estava doente enquanto escrevia, morreu em seguida, de câncer.

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Gosto muito quando leitores me escrevem. Com exceção, claro, de quando me xingam, o que acontece de vez em quando. Anos atrás, um leitor raivoso reclamou que eu falava de assuntos tolos enquanto o mundo pegava fogo. Para mim a regra é clara: como jornalista, devo falar do mundo em chamas. Como cronista, posso me dedicar aos assuntos “tolos”.

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Compartilho com os leitores um fato “tolo” de suma importância que aconteceu no meu quintal: abelhas jataí se instalaram no tronco oco de uma velha árvore. Discretas, inofensivas, pequenas, as abelhinhas amarelas saem uma a uma da colmeia como jatos decolando de um porta-aviões. Lá dentro deve ter um pouco daquele mel delicioso que elas produzem. Caso o leitor não conheça, recomendo que experimente. Se existiu um néctar dos deuses, devia ter sabor de mel de jataí. Do outro lado da rua, o vizinho Ademar me conta que este ano seu pé de maracujá está carregado de frutos porque a mandaçaia apareceu. A mandaçaia é outra abelha nativa, grande e preta, principal polinizadora do maracujá. São criaturas maravilhosas, as nossas abelhas sem ferrão.

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