Arte: Felipe Lima| Foto:

Pelo menos da boca para fora, as pessoas instruídas não acreditam mais em destino, em sorte e azar, em vontade divina. No que diz respeito ao que acontece na vida de cada um de nós, o que vale é acreditar na meritocracia. A palavra, que transbordou do mundo da administração, é um mantra dos nossos dias. Refiro-me aos nossos dias brasileiros, que é o que eu conheço, mas suspeito que seja o mesmo pelo mundo afora. Vejamos o que escreveu recentemente o filósofo suíço Alain de Botton: “Nossas sociedades nos dizem que todos são livres para progredir se tiverem o talento e a energia necessários”.

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O perigo implícito nesta crença é concluir que, se aqueles no topo merecem o sucesso, então os que estão lá embaixo devem merecer o fracasso. Diz de Botton: “Aquilo que é compreendido como insucesso não é mais visto, como no passado, como acidente ou falta de sorte, mas como um sinal de falta de talento ou de preguiça”.

Note que ele menciona um tempo anterior no qual, ao se refletir sobre os avanços e solavancos da vida de cada um de nós, levava-se em conta o papel da sorte. Mas sorte e azar são conceitos desacreditados por sociedades modernas por estarem cercados de irracionalidade, guiados pelo acaso, desprovidos de explicação. Vivemos tempos em que tudo é esclarecido pela ciência, o que torna difícil a convivência com o não científico, como as crenças religiosas. É uma grande reviravolta na trajetória do ser humano que foi, desde o tempo das cavernas, um explorador de mitos.

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Os gregos, por exemplo, representavam no teatro a mitologia na qual baseavam suas vidas. Uma delas era a convicção de que os deuses, o destino ou o azar às vezes causam problemas contra os quais o ser humano nada pode fazer – é a tragédia. O personagem sofria mesmo não sendo culpado. Restava-lhe apenas manter a dignidade. Foi assim com Édipo, com Agamenon, com Prometeu.

A meritocracia, com sua vocação matemática, adequa-se perfeitamente ao espírito dos tempos atuais. Não sem causar injustiças.

Em relação ao sucesso financeiro, por exemplo. Uma sociedade que pensa sobre si mesma como meritocrática transforma a pobreza de problema em punição; aqueles que “falharam” deixam de ser desafortunados para serem perdedores. É injusto. Sabemos que o esforço exigido de alguém para que progrida será maior ou menor dependendo da realidade do lugar onde nasceu, da situação educacional da família, da realidade socioeconômica do entorno onde trabalha. Sendo assim, de uns se exige um “mérito” muito maior que de outros.

Vi outro dia o apresentador David Letterman entrevistando a família do ator George Clooney. Uma família invejável: equilibrada, feliz e bem-sucedida. Diante de um comentário qualquer de Letterman, o velho Nick Clooney o interrompeu: “Temos sorte!” Dali para a frente identifiquei naquela família uma característica das pessoas que reconhecem sua boa fortuna: eles se sentem compelidos a retribuir.

O fato é que quem atribui seu sucesso em parte à sorte ou à ajuda divina tende a se sentir grato. Quem atribui tudo ao próprio mérito sente orgulho de si mesmo. Enquanto o orgulho é um sentimento que se fecha em si mesmo, a gratidão empurra para fora, nos conecta ao mundo e a seus mistérios.

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