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Fellini e meu amigo Constantino

Ao lado do micro-ondas deixo um livro, que pego para ler durante o café da manhã. É uma leitura curta, interrompida, que avança devagar ao ritmo de uma xícara de café com leite. Uma xícara, três páginas. Essa é a matemática da leitura matutina. Por acaso, tenho agora o livro perfeito, as memórias de Federico Fellini, em uma edição de 1974 da L&PM. É um registro de lembranças, uma cena que ele viu aqui, uma pessoa que ele observou acolá. Lembranças, ele tinha certeza, não são objetivas. São filtradas por nossa inocência ou nossa maldade, nossa alegria ou tristeza, nosso apego. Sobre a cidade em que nasceu, Rimini, ele diz: “Não consigo ser objetivo. Rimini é uma poção confusa, medrosa, terna, com o grande respiradouro do vazio aberto ao mar.” Suas pequenas histórias sobre a vida em Rimini são poéticas, bonitas. Mesmo assim, adulto, ele não gosta de voltar para lá. Chega a comprar um terreno e uma casa na cidade, mas não usa nenhum dos dois. Ao visitar o terreno – que comprou sem conhecer – encontra um homem de ceroulas descendo uma bandeira do mastro, que diz sobre o já famoso Fellini: “Vejo uma cara simpática, mas não conheço este senhor”. O sujeito de ceroulas era um especialista em Garibaldi e em vinhos da Emilia-Romanha, que insiste que compartilhem uma garrafa. É possível imaginá-lo como um personagem de Amarcord.

Vi Amarcord no Cine Groff, em uma sessão de domingo que começava por volta das 10 da manhã. Não lembro o horário exato, mas sim que pulei da cama e corri para o cinema – situação estranha e ao mesmo tempo perfeita para o filme que eu iria ver. Depois de oito horas de sono, o sonho. Amarcord é uma colagem de personagens e cenas que Fellini deve ter visto ao longo da vida traduzidas por sua subjetividade. Saí do escuro do cinema e caminhei por uma ensolarada Rua XV, encontrando conhecidos, com a sensação de que só então estava acordando de fato: acordando em plena rua, com um amigo chamando meu nome lá de dentro da Confeitaria Schaffer. Hoje, revendo a experiência, diria que nem ali eu acordara.

Tenho um amigo que conta cenas de sua infância ao estilo de Fellini. Constantino e Federico são aparentados nas narrativas. Pequeno, nos anos 40, Constantino acompanhava os pais quando estes saiam para cuidar de seus afazeres. Quantas lembranças maravilhosas trazemos todos nós dessa situação em que, protegidos pela presença do pai ou da mãe, assistimos à vida dos adultos? A última história que ele me contou caberia em Amarcord. Ele e a mãe, Iolanda, iam ao Centro de bonde. Perto deles, sentou-se uma mulher com um menino que tinha a cabeça coberta por uma toalha de banho, enrolada como se fosse um turbante. Irritada, brava, a mulher ia dando piparotes na cabeça do seu pequeno paxá, que aceitava o castigo em silêncio. Incomodada, Iolanda interviu. O que o garotinho havia feito para merecer apanhar tanto? “Quer ver?” – teria dito a mulher para então desenrolar a toalha revelando um pinico bem enfiado na cabeça do menino. Estavam indo para um hospital para extrair o pinico – ou seria melhor dizer extrair a cabeça?

O Constantino tem um museu, o Museu Guido Viaro, que se o leitor ainda não conhece, recomendo que procure, ali na Rua XV (tudo acontece na XV). Se tiver a sorte de encontrar por lá o Constantino, pergunte sobre algumas das figuras que seu pai Guido retratou. Com o que ele nos conta, tudo fica mais interessante. É um belo retrato de um jovem, que Guido pintou. Melhor ainda quando Constantino nos diz: “Esse rapaz era incendiário” e diante de nossa expressão de espanto ele insiste: “Piromaníaco.” Guido retratou o piromaníaco e Constantino, como Fellini, compartilha conosco essas memórias loucas e cheias de poesia.

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