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Desagrada-me o clima de “nós” e “eles”. Nós, os saudáveis; eles, os que estão nos grupos de risco. Alguns reforçam a divisão na busca de um conforto, do alívio que sentem ao enxergar um limite para o vírus, uma fronteira para o seu avanço. Dentro dos grupos de risco é que o vírus é perigoso. Para o restante da população, a vida segue. Não cabe julgar quem pensa dessa forma. Mas este pensamento gera posturas arriscadas dos que se consideram imunes. O pior é que desmerece a vida de quem tem mais idade ou tem uma doença crônica. Como se em toda família não houvesse várias pessoas nessa situação. Se não morando na mesma casa, ainda assim parentes próximos, como pais, avós, cunhados e primos. Cada perda provocada pelo vírus em alguém dos grupos de risco vai doer nos corações de muitos outros.
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A sensação de imunidade geralmente vem de antes, já acompanhava a pessoa nos tempos de normalidade. Ela não fuma, ela “se cuida”, ela teve a sorte de nascer com uma genética favorável. Ela é jovem ou pelo menos não é idosa. É poderosa.
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O presidente Bolsonaro teve a sorte de 1. não ser contaminado pelo vírus apesar de ter tido contato com várias pessoas infectadas ou 2. ter sido contaminado e não ter adoecido. A história oficial diz que a resposta correta é a 1, mas isso é debatível. Certamente a sorte que o presidente teve agora influencia sua postura. Ele continua se sentindo imune e, além disso, é o tipo de pessoa que não se põe no lugar do outro com uma história diferente da sua. Em outras palavras, falta-lhe empatia. Se tivesse adoecido, talvez a história seria outra.
Cada perda provocada pelo vírus em alguém dos grupos de risco vai doer nos corações de muitos outros
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Sem dúvida o combate ao novo coronavírus fará muito mal à economia. Aqui no Brasil muitas pessoas estão esperneando como se fosse possível fugir dessa realidade. A questão agora é fazer planos para a recuperação econômica. É tarefa árdua, mas é o que todos terão de fazer: países, empresários e trabalhadores. O presidente Bolsonaro parece apavorado com a crise econômica que ele certamente não tem a menor ideia de como resolver. Por isso prefere o caminho fácil: negar o problema. Corremos o risco de não resolvermos nada, nem a economia nem a saúde.
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Uma crise como esta nos faz pensar no papel do Estado: com 12 milhões de desempregados e a maior parte da população sem plano de saúde, o que seria do Brasil sem o SUS? O que seria do Brasil sem os cientistas que trabalham nos serviços públicos de pesquisa, como o Lacen, aqui no Paraná, e o Instituto Oswaldo Cruz? Como seria se o poder público não fizesse a transferência de renda, ainda que com valores baixos?
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A situação extrema também mostra que precisamos de uma administração pública eficiente e operante. Como fazer funcionar a megaoperação para pagar a ajuda de R$ 600 se não houvesse funcionários que conhecem a máquina do Estado? Como monitorar a ocorrência da doença sem um serviço de vigilância sanitária proporcional ao gigantismo do país?
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As prefeituras, no nível mais básico do Executivo, ganharam uma importância gigantesca no controle da pandemia. Na prática, são os prefeitos que definem orientações e convencem os moradores dos municípios a segui-las. Também estão muito mais sujeitos à pressão. Precisam ser valentes.
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Esta crise acontece em um momento em que faltam líderes dispostos a tomar a dianteira. Por isso faltam palavras de incentivo. Palavras de incentivo podem ser duras, como mostrou Churchill e sua promessa de “sangue, suor e lágrimas” para os britânicos na Segunda Guerra Mundial. Mas elas apontam para uma direção. Estamos todos como baratas tontas sem saber para onde correr, o que pensar, o que projetar no futuro. Vamos tateando as paredes de nossas casas transformadas em bunkers, cegos pela preocupação e pelo susto com o gigante que caiu sobre nossas cabeças e que se debate, rolando de um lado para o outro e fazendo estrago.
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Uma mensagem de conforto pode trazer o básico: isso não vai durar para sempre. Mas também indica uma linha de ação: “todos temos responsabilidade”. É o que se vê nas falas da primeira-ministra da Nova Zelândia, Jacinda Ardern. Quando ela fala algo simples como “fique em casa e salve vidas”, está dizendo o que fazer e com que propósito. Quando Jacinda ecoa em suas palavras o que os neozelandeses estão pensando (“situação impensável”, “ansiedade”, “medo”), ela está se conectando com eles. Vi alguns vídeos da primeira-ministra se dirigindo ao seu povo. Suas falas são diretas, as informações transparentes. Está dando certo.
Uma hora isso acaba e nós iremos nos encontrar novamente para o churrasco de domingo, para a festinha de aniversário do bebê, para a taça de vinho ou para o café no Mercado Municipal
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A rainha Elizabeth II fez o que tinha de fazer. Dirigiu-se a seus súditos com palavras de incentivo. O trecho duro, mas sutil, de sua mensagem foi quando alertou: “Espero que nos próximos anos todos nós possamos sentir orgulho da forma como agora estamos respondemos ao desafio”. Com quase 94 anos e testemunha de grandes crises nacionais, ela sabe que a pandemia de 2020 vai um dia virar história e que todos seremos julgados pelo que fizemos durante a crise. A fala da rainha fez bem aos britânicos e foi “emprestada” por pessoas do mundo inteiro que estavam carentes de esperança.
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O discurso de Elizabeth II terminou com uma frase singela: “Nós iremos nos ver de novo.” Cada palavra naquele discurso foi cuidadosamente escolhida para carregar muito significado. “Nós iremos nos ver de novo” é o título e o refrão de uma canção lançada durante a Segunda Guerra Mundial para animar os soldados e suas famílias, separados pelo conflito e que talvez nunca se reencontrassem. É a trilha sonora de uma tragédia. Foi usada em vários filmes, de Doutor Estranho e T2: Trainspotting até em um episódio dos Simpsons. Você certamente ouviu “We will meet again, I don’t know where, I don’t know when, but I know we will meet again some sunny day...”
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Avós separados de seus netos, pais separados de seus filhos, amigos separados de amigos, uma hora isso acaba e nós iremos nos encontrar novamente para o churrasco de domingo, para a festinha de aniversário do bebê, para a taça de vinho ou para o café no Mercado Municipal. Em resumo, como disse Elizabeth II, iremos nos ver de novo.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos