Dom Pedro I, elegantemente vestido em seus trajes militares, desembainha sua espada no gesto mais conhecido da nossa história e anuncia que o Brasil será independente de Portugal. A insistência nesta imagem para resumir o processo de independência e fazer de Pedro I um herói obscureceu o restante da história.
Não encaixa na narrativa a informação de que o imperador havia começado o ano de 1822 ansioso por voltar a Portugal. “Todos os dias estava a bordo do navio que o devia conduzir para lá e em todo lugar manifestava os maiores desejos de que chegasse a hora”, registrou sua esposa. Também ficou em segundo plano o papel dela, Leopoldina, arquiduquesa da Áustria transformada em imperatriz do império tropical e dona de um raciocínio político mais sofisticado que o do marido. Leopoldina tinha “defeitos” que a história oficial não perdoou: era estrangeira e era mulher.
Grávida de cinco meses, ela presidiu a reunião do Conselho de Estado que, em 2 de setembro, decidiu recomendar ao imperador que declarasse a independência. Na mesma sala em que aquele grupo de homens redigia a mensagem que seria enviada a Pedro I, Leopoldina escreveu de próprio punho uma carta ao marido argumentando a favor da separação de Portugal. Ao lê-la, um dos conselheiros teria dito a Jose Bonifácio de Andrade e Silva: “Meu amigo, ela deveria ser ele”.
O resto da história nós aprendemos na escola. Pedro I recebe as cartas às margens do riacho do Ipiranga e ali mesmo avisa sua comitiva que o Brasil está se separando de Portugal e se tornando um país independente.
O fim de Leopoldina também conhecemos. Continuou sofrendo com a vida extraconjugal do marido e morreu aos 29 anos, quatro anos depois daquele Sete de Setembro. Seu filho, o futuro imperador dom Pedro II, ainda era bebê.
Cinco anos depois, o menino, já coroado, seria deixado pelo pai, que partiu para assumir o trono de Portugal. O filho de Leopoldina cresceu como um órfão e, como costuma acontecer com os órfãos, procurou resquícios da personalidade da mãe que não conheceu. Encontrou essa personalidade em algumas salas da Quinta da Boa Vista, a residência construída por seu avô, dom Joao VI, no Rio de Janeiro, para ser uma grande casa de campo, uma “quinta”. A filha do imperador austríaco, sobrinha-neta de Maria Antonieta e cunhada de Napoleão Bonaparte, ocupou seis quartos do segundo andar do edifício.
Entre os guardados da mãe, devem ter chamado a atenção de Pedro II os animais empalhados, as amostras de pedras e de plantas. É possível imaginá-lo, solitário, ano após ano, sonhando diante das vitrines que guardavam as pedras que ela trouxe da Europa e outras que coletou no Brasil. Leopoldina estudara um pouco de botânica e mineralogia enquanto moça solteira em Viena. A coleta de pedras e plantas ocupou parte de suas tardes enquanto esperava o casamento, único destino honroso para uma mulher de seu tempo.
O Brasil interessava aos europeus por suas riquezas naturais, que eles mais intuíam do que conheciam. Fazia sentido, portanto, enviar junto com a recém-casada Leopoldina uma comitiva de cientistas para explorar nosso território. Vieram no navio com a arquiduquesa dois dos botânicos mais importantes da época, Von Martius e Von Spix.
Viajantes ilustres registraram que Pedro II fazia questão de mostrar-lhes o gabinete de mineralogia de sua mãe. Ele tinha interesse em ciência, era curioso, sondava a modernidade. Era também o filho orgulhoso da arquiduquesa que veio da Europa com um olhar que enxergava além da extravagância natural do Brasil e das mesquinharias da corte. Tão diferente que era do pai e do avô, Pedro II deve ter procurado nos registros de ciência deixados por Leopoldina um vínculo que o salvasse do vazio de sua situação familiar.
Aqui especulo sobre a ligação do imperador com a mãe que não conheceu. As demais informações estão em livros, entre eles A biografia íntima de Leopoldina, de Marsilio Cassoti, que se baseia principalmente na correspondência da imperatriz e de alguns contemporâneos dela.
Vasculho esta relação entre Pedro II e a mãe como parte da minha tentativa de processar o incêndio que destruiu o Museu Nacional e o interior da residência da família Bragança em outro 2 de setembro, exatos 196 anos depois daquela reunião do Conselho de Estado. Quando Pedro II partiu para o exílio ao fim da monarquia, decidiu não levar consigo a coleção de pedras de sua mãe. Doou-as ao Museu Nacional, que reuniu coleções de zoologia e mineralogia que vinham sendo montadas desde o tempo dos vice-reis.
Como uma borracha que apaga facilmente um texto escrito a lápis e com mão tímida, o incêndio na Quinta da Boa Vista destruiu parte considerável da materialidade da história do Brasil colonial e imperial e da ciência brasileira. Foi um tapa na nossa cara. Um tapa bem merecido, certamente. Um tapa que nos desperte, espero.