Nunca escrevi sobre meu pai neste espaço público que ocupo há alguns anos. Só o mencionei en passant. Nada à altura da relação que existia entre nós. Fui uma filha muito ligada ao pai. Talvez por isso me custe falar dele. Mas, como leio muito, cruzo aqui e ali com textos que algum autor escreveu para registrar a memória do pai. Me dei conta de que estou em falta com seu Vicente. Ele adoraria ver seu nome no jornal. A internet, ele não chegou a conhecer.
Meu pai morreu há quase 35 anos, um mês antes do Tancredo Neves. Naquele calendário muito particular que cada um de nós monta, misturando experiências pessoais com fatos históricos, me recordo que a então chamada Nova República, ou seja, a República fundada após os militares deixarem o poder, nasceu na época em que meu pai estava lutando contra um câncer. Quando ele morreu, Tancredo Neves já estava internado, com diverticulite.
Não era velho, o meu pai. Tinha 72 anos quando morreu. Era um senhor de cabelos muito brancos, lisos, bem penteados. Quando jovem, o cabelo era escuro, a pele sempre foi muito clara, rosada. Pelo pouco que sabemos, era 100% descendente de portugueses. Claro que no Brasil não dá para confiar muito nessa informação. Mesmo o fato de que na família dele só havia sobrenomes portugueses não garante nada.
Estou em falta com seu Vicente. Ele adoraria ver seu nome no jornal
O nome completo era Vicente Caetano da Silva, filho de Pedro Caetano da Silva e Bernardina Machado Homem. Frequentou pouco a escola. Quanto tempo exatamente, não sabemos. Nasceu no interior de Minas Gerais em uma cidade chamada Cachoeira de Minas e se mudou garoto para o interior do Paraná, para a região que chamamos de Norte Pioneiro. Frequentar a escola por muitos anos era, naquelas primeiras décadas do século 20, um luxo reservado para os filhos de famílias abastadas ou de famílias de classe média que viviam em cidades grandes. Meu pai não se enquadrava nessas situações. A família era modesta e numerosa. Morou sempre em cidades pequenas, muitas delas recém-criadas naquele Paraná que ainda era uma fronteira agrícola bravia.
Em alguma sala de aula que frequentou, ou talvez como autodidata, ele dominou a arte da caligrafia. Escrevia com uma letra digna de enfeitar convite de casamento. Gostava de usar caneta-tinteiro. Também aprendeu a ler jornais. Valorizava a imprensa. Quando os filhos – somos seis – chegaram à idade de prestar vestibular, fez uma assinatura da revista Veja que manteve para sempre. Dizia que fazia isso por nós, que estar bem informado ajudava na hora de fazer as provas. Meu pai também gostava de acompanhar telejornais. Era um homem bem informado, mas não me lembro de ouvi-lo argumentar em discussões políticas. Talvez tenha aprendido a não se envolver em discussões por algumas razões, que enumero: viveu muito tempo sob ditaduras (o Estado Novo de Vargas e os 25 anos de governo militar pós-64); era gerente de banco, profissão que exigia que não tomasse partido se não quisesse perder clientes; e, por fim, morando no interior do Paraná nos anos 50 e 60, testemunhou muita briga em época de eleição que acabou em morte. Se bem me lembro das histórias que ele contava, o interiorzão era cenário de bangue-bangue, terra de ninguém. O interior do Paraná era o que é hoje a Amazônia, com grileiros, matadores e queimadas.
Ele era um homem bem informado, mas não me lembro de ouvi-lo argumentar em discussões políticas. Talvez tenha aprendido a não se envolver em discussões por algumas razões
Meu pai foi encarregado pelo patrão, Avelino Vieira, de abrir agência do Bamerindus em alguns desses novos municípios. Não o imagine em sofrimento com a vida em trânsito: adorava mudar de cidade, animava-se com os novos municípios, amava ser bancário. Foi até o fim da vida fiel ao Bamerindus, que creio que amava como se fosse parte de sua família.
No fundo, lá no fundo, meu pai era um agricultor daquele tipo que nunca plantou uma roça. A família era de agricultores e por isso ele se identificava com esse meio. Gostava de visitar clientes que moravam em sítios. Levava junto os filhos que estivessem dispostos a se aventurar pelas estradas de terra. Na propriedade, admirava os porcos, as galinhas, a lavoura. Na nossa casa, cultivava horta e, quando possível, mantinha um galinheiro.
Quando viajávamos, sempre para o Norte do estado para visitar parentes, ele ia apontando vacas e bois nos pastos e dizendo: “Olha que vaquinha linda!” Nós todos olhávamos e concordávamos que a vaquinha era linda. Já adulta, me dei conta de que fazia o mesmo. Viajando sozinha, dizia para mim mesma: que vaquinha linda! Quando percebi que o pensamento era um hábito (uma homenagem ao pai?) e não uma admiração verdadeira pelo gado no pasto, ele nunca mais me ocorreu naturalmente.
Meu pai morou em muitos municípios do Paraná. Me dou conta de que nem consigo listar todos. Lembro de Pinhalão, Tomazina, Umuarama, Araruna, Peabiru, São Mateus do Sul. Em Curitiba, ao descobrir que trabalharia em um lugar fechado, longe do público, preferiu se aposentar. Sua vida de aposentado não foi boa: estava em uma cidade nova, cidade grande, morando em apartamento.
No fundo, lá no fundo, meu pai era um agricultor daquele tipo que nunca plantou uma roça
Meu pai não se metia na vida dos filhos, não dava palpites. Não se animou quando eu disse que faria Jornalismo, mas não reclamou. Tinha uma autoridade impressionante sobre nós, que não sei exatamente a que se devia: não precisava dar ordens nem broncas nem fazer caras feias. Tínhamos pavor de contrariá-lo.
Meu pai assistia a novelas, mas não as comentava. Preferia as de temática rural. De vez em quando demonstrava admiração por alguma canção popular. Lembro dele espantado com a beleza de Se eu quiser falar com Deus, de Gilberto Gil. Como a maioria dos de sua geração, era fã de um faroeste. John Wayne era seu ídolo.
Meu pai era um homem sem maldade, ingênuo até. Também era vaidoso. Gostava de se vestir bem. Foi cliente do Magazin Avenida. Fumava cigarros de palha que ele mesmo preparava e que espalhavam um cheiro forte pelo apartamento inteiro. Um belo dia decidiu parar de fumar e o fez sem dificuldade e sem contar para ninguém.
Meu pai gostava de ser pai. Quis ter seis filhos. Carregava-nos com ele até em compromissos de trabalho. Minha mãe contava que, ao entrar em um restaurante, ele colocava todos nós em volta dele. Sabia que chamava a atenção. Queria nos exibir.