Num golpe de sorte, ganhei esta semana duas caixas de livros. O amigo precisava liberar espaço nas estantes para as próximas aquisições. As prateleiras bem organizadas estão vergando sob o peso do papel. Algo tem de sair para que o novo, que a curiosidade dele continua a buscar, entre naquela casa. Coube a mim levar embora um tesouro: muitos exemplares de livros de crônica, a maioria dos anos 60, o auge desse gênero no Brasil.
Folheio os exemplares bem cuidados em um primeiro ato de exploração. O cenário da maioria dos textos é as ruas do Rio de Janeiro, onde o gênero nasceu na época do Império e ganhou a condição de gênero literário graças a jornalistas migrados de outras partes da Federação: os mineiros Otto Lara Resende, Paulo Mendes Campos, Fernando Sabino e Carlos Drummond de Andrade, a cearense Rachel de Queiroz, os capixabas Rubem Braga e Carlinhos de Oliveira. Vindos de cidades menores, todos se deslumbravam com o pitoresco que se espalhava pelos bairros cariocas.
Mas havia algo mais naquelas crônicas, outros cenários que os mesmos autores registravam com ternura ou humor. Era a vida nas cidades pequenas ou nas fazendas onde todos tinham morado ou pelo menos circulado em suas vidas anteriores. Até a Belo Horizonte dos cronistas mineiros era pequena e interiorana.
Recordo um texto de Drummond em que ele descreve uma tarde de domingo em um distrito rural de Minas Gerais. Haverá um jogo de futebol em alguma parte e a rapaziada se movimenta pegando carona na carroceria de um caminhão. No mais, a tarde é quieta e parada como são quietas e paradas as tardes de domingo em lugares assim.
Rubem Braga registrou as pescarias. Rachel de Queiroz, as caçadas.
Já naquela época o que o Brasil queria era se modernizar e a modernidade almejada era a dos grandes centros onde, em um país marcado pela desigualdade na distribuição de todos os bens, estão concentrados os recursos de saúde, educação, cultura e emprego. Sendo assim, virou-se as costas para o interior. As Donas Bentas, os Garnizés e Zé Carneiros foram tão esquecidos quanto a Cuca e o Saci.
Aos poucos, a própria tecnologia, nossa atual senhora e mestra, mudou as bases que justificavam a concentração humana nas capitais. O interior ganhou acesso à maior parte dos recursos que antes só estavam disponíveis nos grandes centros – que, no tempo dos cronistas que citei acima, eram apenas Rio e São Paulo.
A tecnologia torna menos diferente o homem e a mulher do interior do homem e da mulher da cidade grande. Lá como cá faz-se compras on-line, assiste-se filmes e séries dentro de casa, lê-se notícias do mundo todo. O ambiente em torno deles é que se diferencia, a dinâmica social também, os ciclos da natureza têm mais influência. Agora nos falta a crônica dessa vida vivida fora das metrópoles.
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Segundo o IBGE, 16% dos brasileiros estão em zonas rurais. A “virada” apareceu no censo de 1970, que registrou pela primeira vez uma população urbana maior que a rural (56%). Em 2015, o Ministério do Desenvolvimento Agrário usou dados da economista e socióloga Tania Bacelar de Araújo para questionar a leitura dos dados demográficos. A tese de Tania é que moradores de municípios com menos de 5 mil habitantes vivem em um ambiente rural, próximos da natureza e com relações sociais diferentes das encontradas no contexto urbano. Por isso ela defende que o porcentual correto da população rural seria de 36%. Que diferença isso faz? Para fins de políticas públicas, muita diferença. Além do mais, se o Estado, a imprensa e outras instituições prestassem atenção às comunidades periféricas – que são todas as que estão fora dos bons bairros dos grandes centros urbanos –, levaríamos menos sustos, como os resultados de algumas eleições e os modismos culturais “caipiras”.
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