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Minha amiga Yurie me deixou ler o caderno em que seu pai, Hideo Handa, registrou resumidamente a vida dele. O senhor Handa fez algo raro ao escrever suas experiências para apresentá-las aos filhos. Pouquíssimas pessoas dão-se a esse trabalho. Talvez porque não se sintam à vontade escrevendo, o que é uma pena. A não ser que você viva disso, que faça da escrita sua profissão, não há por que limitar a autoexpressão por temer o mau texto. Não há texto ruim quando leitor e autor estão conversando sobre suas experiências. A intimidade interessa mais que a correção ortográfica ou a sintaxe.
Voltando ao senhor Hideo Handa. Para contar sua história, ele fala também dos pais, do Japão onde nasceu, do Brasil onde chegou em 1929, e dos filhos. Tem pelo menos três gerações conectadas ali. Ou quatro, se imaginarmos que seus netos vão ler suas anotações.
Das memórias de Hideo Handa, quero extrair um trechinho que me impressionou. Nos anos 1980, dois de seus filhos foram trabalhar no Japão. Enquanto estavam lá, convidaram o pai para visitá-los e rever o país para onde nunca tinha voltado desde que emigrara, na adolescência. O trecho que quero contar é aquele em que o senhor Handa está no alojamento onde moram sua filha e mais seis moças brasileiras. Ele as observa e se preocupa. Percebe que falta a elas o que chama de “objetivo concreto” para estar ali, falta a elas uma razão que justifique todo o sacrifício que estão fazendo. A vida de um dekassegui é muito difícil.
O amor, o mais importante, tinha de ser a primeira razão para tudo. Afeto e família, para a pessoa ser feliz. Depois vem o dinheiro. Depois vem o resto
Então o patriarca pergunta ao grupo de moças o que as fez se tornarem dekasseguis. Elas respondem com uma sequência de motivos apresentados em ordem de importância. Em primeiro lugar, conhecer o Japão. Em segundo lugar, ganhar dinheiro. Em terceiro lugar, construir uma família. E em quarto e último lugar, buscar o amor. O senhor Hideo Handa se espanta com o que ouve. Para ele, a resposta está claramente invertida. O amor, o mais importante, tinha de ser a primeira razão para tudo. Afeto e família, para a pessoa ser feliz. Depois vem o dinheiro. Depois vem o resto.
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Suponho que o senhor Handa não se referia ao amor romântico, ao amor parental ou a algum tipo de amor em particular. Ele fala de afeto simplesmente. Sem esse elemento, seja lá em que forma o amor aparecer, o que sobra na vida é o tempo, que preenchemos de maneira tola ou complexa, com frutos ou sem frutos. Do jeito que der.
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Contar a história de alguém, contar a história de si mesmo, é desenhar um pedaço do mundo. É fazer o milagre de capturar um momento, é fazer história a partir dos pequenos e não dos poderosos.
Ressuscita-se um morto através de uma história bem contada.
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“não há quem goste de ser númerogente merece existir em prosa”
Não sei de quem é a frase. Encontrei-a no site Inumeráveis, que registra as histórias das vítimas brasileiras da pandemia.
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Inumeráveis porque não podem ser limitados a um número (a primeira vítima, a centésima vítima). Inumeráveis também porque esse número ficou grande demais e não sabemos mais como dizê-lo.
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Compreender é difícil. Manifestar indignação é, ao contrário, muito fácil.
Por isso a barulheira em que vivemos, porque está difícil entender tanta informação e tanta transformação. Mas gritar é moleza. A frase completa é do italiano Paolo Rossi: “Compreender é difícil. Requer tempo e aquisição de conhecimentos e paciência. Propor remédios ou construir programas é ainda mais trabalhoso: demanda tempo e paciência e imaginação e criatividade e capacidade de fazer convergir num ponto a opinião de muitos. Manifestar indignação é, ao contrário, muito fácil.”
Rossi escreveu isso no livro Esperanças, em que afirma que um certo catastrofismo é tendência desde o início do século 20. Ele cita o libanês Nassim Nicholas Taleb: “A raça humana sofre de uma doença crônica que consiste em subestimar a possibilidade de que o futuro se afaste do percurso imediatamente previsto”.
Compreender é difícil. Manifestar indignação é, ao contrário, muito fácil
Diante de cada novidade, de cada surpresa, os oportunistas e os apressados criam teorias conspiratórias e espalham o terror. “O comportamento apocalíptico não contempla outra saída que não seja o triunfo de todo o Mal ou o triunfo de todo o Bem. A história é, ao contrário, um entrelaçamento de bem e de mal, ou pior, de atos que são julgados por alguns como bons, e por outros como maus”, diz Rossi.
Esperanças é um livro provocador e pacificador ao mesmo tempo. Termina propondo que é possível viver “com uma dose suportável de angústia” e perseverar na esperança “num mundo que, por sua natureza, é imperfeito”. Estas últimas palavras, ele empresta de Bento XVI.
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Abro outro livro, A presença dos mitos em nossas vidas, de Mary Midgley, que já no início fala sobre “a desvantagem do drama”, algo parecido com o que disse Paolo Rossi. Mitos são ideias que persistem até quando já não fazem mais sentido. Alguns conceitos são atrativos porque têm uma simplicidade dramática. Ela cita como exemplo a liberdade acima de tudo, acima da justiça e da compaixão. “Liberdade comercial completa, por exemplo, ou liberdade total para portar armas pode causar sérios danos e injustiças”, diz Midgley. “Precisamos, então, suplementar o ofuscante insight original a respeito da liberdade com um sistema de prioridades mais criterioso”. O insight original – neste caso, a necessidade de preservar a liberdade individual acima de tudo – é um pensamento que foi muito útil em determinados períodos e que pode criar problemas no período seguinte se for usado como um mito, ou seja, se for adorado e não dosado. Ele está por trás de um debate que aflora hoje com a reivindicação da liberdade de não usar máscaras, de não tomar vacina. É a liberdade individual desobrigando o cidadão de sua responsabilidade com a comunidade. É o mito como justificativa para negar a realidade do que chegou de forma imprevista, para não mudar a rotina, para não estudar e refletir.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos