Quando uma partícula intrometida e não identificada se alojou no céu da boca e me obrigou a tossir para expulsá-la, meu cérebro disparou o alarme e me pus a traçar uma estratégia. Se aquela tosse era sintoma de covid-19, eu precisava agir para proteger os meus. Usar máscara dentro de casa até ter o diagnóstico, me afastar deles... O que mais? O trabalho mental foi interrompido pelo meu filho. O som da minha tossezinha seca desencadeou nele a mesma reação que havia desencadeado em mim: medo e uma necessidade urgente de proteger.
“É só uma tosse, algo na faringe...” – expliquei.
Meu filho continuou parado na porta. Naquela tarde, ele tinha trabalhado atendendo o público. “Tenho medo de trazer o vírus pra você e pro meu irmão, mãe.”
O que ele deve fazer? Demitir-se? E ficar até quando dentro de casa, sem fazer nada? Aos 21 anos!
Tenho 53 anos, nenhum problema de saúde, o peso é maior do que eu gostaria, mas nada que exija cuidados. Nem um momento me passa pela cabeça que a epidemia seja uma ameaça para minha sobrevivência. Mas é uma ameaça para a minha felicidade, para minha sanidade, por causa dos meus filhos, ambos portadores de doença respiratória crônica.
Vejo muitas pessoas na mesma situação que eu. Não somos as presas preferenciais do vírus, mas as pessoas que amamos estão cercadas por uma linha imaginária vermelha que as destaca sem as proteger: grupo de risco.
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O filósofo alemão Peter Sloterdijk fala em “coimunidade”, um compromisso individual com a proteção mútua. Eu me cuido por eles, eu me cuido por você. Esta é a nova maneira de estar no mundo. Ou pelo menos é assim que tem que ser.
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Também é de Sloterdijk uma tentativa de resposta interessante à questão: o mundo pós-pandemia será diferente?
Quando penso nesta pergunta, desejo que a resposta seja sim. Que a força do consumismo e a velocidade da vida contemporânea diminuam, abrindo brechas no materialismo, gerando uma mentalidade mais generosa. Mas vejo a superficialidade e o consumismo tão arraigados no espírito dos nossos dias que é difícil acreditar que irão embora.
Sloterdijk é mais otimista. Ele diz que o mundo hoje é uma gigantesca esfera de consumo que se mantém graças a uma “atmosfera frívola” que todos nutrem sem grande resistência. Para desejar acima de tudo consumir, ainda que isso signifique sacrificar nosso tempo, nossos valores e nosso planeta, temos que ser frívolos. “O vínculo entre a atmosfera frívola e o consumismo foi rompido. Todo o mundo espera agora que esse vínculo volte a ser reconectado, mas vai ser difícil. Depois de uma disrupção tão grande, o retorno aos padrões de frivolidade não será fácil” ele disse em entrevista ao El País.
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Como encarar uma ameaça global e não aprender nada? Como não interpretar uma pandemia e suas consequências como sinal de que algo está fora de ordem?
A expectativa de mudanças após a pandemia está em toda parte. Manifesta-se mais na Europa do que no Brasil, talvez porque lá a experiência do isolamento social tenha sido mais forte. Aqui, muitos que podem se isolar tentam viver como se nada estivesse acontecendo e outros tantos não têm a possibilidade de ficar em casa. Aqui, vivemos em mundos paralelos que se chocam, mas não se misturam.
A espera por alguma transformação se explica pelo gigantismo do que estamos vivendo. Como encarar uma ameaça global e não aprender nada? Como não interpretar uma pandemia e suas consequências como sinal de que algo está fora de ordem, de que algo na forma como vivemos precisa ser revisado e reparado? Ou, visto por outro ângulo, como não reagir a uma ordem social que sacrifica tantos?
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Um dos meus autores favoritos, o turco Orhan Pamuk, trabalha há quatro anos em um romance sobre o surto de peste bubônica que atingiu a Ásia em 1901. O título do livro será “Noites de Peste”.
Pamuk conta que, em livros de história e de literatura, encontrou semelhanças nos relatos de epidemias, por mais distantes que estejam uns dos outros no tempo e na geografia. “A resposta inicial para o aparecimento de uma pandemia sempre foi a negação. Autoridades locais e nacionais sempre foram lentas para reagir, distorceram fatos e manipularam dados para negar a existência do problema”, ele escreveu em um artigo para o New York Times. Um exemplo citado por ele está no livro “Os Noivos”, de Alessandro Manzoni, publicado no Brasil por várias editoras ao longo dos anos: o governador de Milão ignora a peste bubônica e mantém a festa de aniversário que oferecerá ao príncipe, juntando convidados, empregados e pulgas contaminadas em uma orgia sanitária.
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Quanto à população, Pamuk nota que os registros históricos e literários identificam duas reações recorrentes: a revolta contra o destino que submete uma geração ao terror que surge do nada (“por que agora?”, “por que comigo?”) e a disposição para acreditar em rumores e notícias falsas.
Com tanta facilidade que temos hoje para nos informar, rumores e notícias falsas poderiam não vingar. Mas vingam e prosperam. A força da mentira revela outra característica do nosso tempo: a disposição para apenas ler e ouvir aquilo que se encaixa na nossa visão de mundo, a levar a sério só a informação que poupa aqueles em quem confiamos e desmerece os que já eram nossos inimigos.
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Muitos estão fazendo sacrifícios, estão empenhados em ser firmes, alguns trabalham mais do que nunca, alguns doam mais do que jamais haviam doado, alguns dão vazão à generosidade e se sentem mais fortes assim
Pamuk observa com lucidez: neste ano de 2020, nosso medo é alimentado menos pelos rumores e mais pela informação precisa a que temos acesso. Quando olhamos um mapa salpicado com bolinhas vermelhas que indicam a presença do vírus, quando vemos gráficos com linhas que apontam para o alto, como para um céu sem limite, não temos para onde correr.
O medo pode levar ao cuidado ou à negação.
O medo testa o caráter. Muitos estão fazendo sacrifícios, estão empenhados em ser firmes, alguns trabalham mais do que nunca, alguns doam mais do que jamais haviam doado, alguns dão vazão à generosidade e se sentem mais fortes assim. Em tempos estranhos, é melhor olhar na direção dessas pessoas porque é lá que está a luz.
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