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Marleth Silva

Marleth Silva

Onde mora o perigo cresce também o que salva

(Foto: Marcos Tavares/Thapcom)

Para quem nasceu até o final dos anos 70, o século XXI era “o futuro”. Outro século, afinal, e um que veria todas as fantasias tecnológicas florescerem. Filmes e livros nutriam nossas expectativas, alguns movidos pelo otimismo e outros pelo medo. Não estavam errados nem uns nem outros.

O futuro em que vivemos hoje se revela surpreendente e radical a cada dia. Nada do que era sólido no nosso cotidiano resiste: nem hábitos, nem empresas poderosas, nem dogmas ou certezas.

Há sempre algo incontrolável nos rumos que as coisas tomam.

Os que não digerem bem os novos costumes arrotam para se livrar do desconforto. Pelo arroto manifestam duvidar da ciência, da solidariedade, da democracia duramente conquistada. Também há os que manifestam desconforto com soluços, estes bem menos barulhentos. Reagem à fúria da máquina se apoiando em algum tipo de nostalgia, talvez lendo velhos livros de papel, talvez se negando a usar um celular e sempre resistindo a postar selfies em uma rede social.

Escrevendo na primeira metade do século XX, Heidegger notou que o mundo humano se transformava em um universo técnico, ao qual nós humanos estamos presos como peças de uma engrenagem. Ele descreveu um cenário em que a expansão da técnica constitui a dimensão planetária de uma forma de razão calculadora. O perigo? É que esta razão calculadora, onipresente e onipotente, faça do ser em si algo irrelevante.

Não conheço a obra do filósofo alemão o suficiente para compartilhar mais sobre seus escritos. Falo o que entendi, que é pouco. Mesmo sendo pouco me causa espanto. Há quase cem anos, ele localizou o elemento mais poderoso que os humanos introduziram em suas vidas sem antever as consequências e sempre crentes de que manteríamos o domínio sobre a técnica – ou sobre a tecnologia, como diríamos hoje.

Em suas reflexões, Heidegger citou um verso do poeta Hölderlin, alemão como ele: “Mas onde mora o perigo cresce também o que salva.” Heidegger e Hölderlin são sempre citados juntos, o que diz muito sobre a mensagem que o filósofo se empenhava em desenvolver. O que salva, Heidegger sugere, é a expressão da humanidade através da sua voz, da linguagem, da poesia. De uma expressão artística afinal, algo que só nós, seres humanos, temos necessidade de fazer e de apreciar. Na minha compreensão, ele sugere um contraponto entre a máquina que existe em função de algo concreto e objetivo e o ser humano que precisa se expressar para não ser... uma máquina.

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Como todos os brasileiros, comecei 2019 com expectativas e apreensões em relação a nossa vida aqui no Bananão, que é como o Ivan Lessa se referia ao Brasil. Fecho o ano com outras expectativas e renovadas apreensões. O Bananão continua sendo um lugar perigoso. Como disse outro escritor da geração do Ivan Lessa, o Otto Lara Resende, às vezes tenho vontade de trancar minha matrícula de brasileiro.

Outros países estão passando por situações igualmente desconcertantes, a ponto de a gente se perguntar o que está acontecendo neste planeta. Que os outros também vejam o avanço de ideias de ódio, do desprezo pela solidariedade, da retomada de diversas formas de ignorância, não é consolo. Ao contrário.

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Se tem algo de que não podemos nos queixar é da oferta de boas leituras nas livrarias. Citei alguns títulos em textos que fui publicando ao longo de 2019. Leio alguns lançamentos intercalados com livros mais antigos que esperavam sua vez na prateleira. Por coincidência, li três livros novos agora no fim do ano. Paletó e eu, da antropóloga Aparecida Vilaça, que relata sua experiência entre índios que a adotaram como parte da família (Paletó era o apelido do pai indígena de Aparecida); Elis e eu, de João Marcelo Bôscoli, que faz um registro da infância vivida ao lado da mãe Elis Regina, e A Elite na Cadeia, do jornalista Wálter Nunes, uma reportagem sobre a vida dos figurões presos pela Operação Lava Jato na Polícia Federal de Curitiba e na Penitenciaria Central do Estado, em Piraquara. Este último é daqueles livros que a gente lê em uma sentada. Recomendo os três. De uma forma ou de outra, todos derrubam preconceitos e salientam o lado humano, muito humano, de seus personagens.

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Despeço-me de 2019 desejando que você que me lê tenha um bom ano novo pela frente. Feliz 2020.

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