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A vida não anda fácil para quem escreve crônicas. A crônica é um gênero textual que nasceu nas páginas dos jornais brasileiros na época em que os jornais tinham páginas e as páginas tinham leitores. O assunto pode ser qualquer um, o que conta é a abordagem, que não é jornalística nem analítica, mas sim pessoal, como na carta endereçada a um amigo. Os cronistas são aqueles que escrevem sobre passarinhos – fama que deve ter tido origem nos textos de Rubem Braga, coroado o Rei da Crônica e que gostava de pássaros e escrevia com frequência sobre eles.
Nestes dias está difícil para mim falar de passarinho ou dos vizinhos ou do meu gato e do meu cachorro. Em primeiro lugar, porque com o isolamento social as idas e vindas estão limitadas e o que eu vejo em um dia costuma ser o mesmo que eu vi em todos os dias anteriores. Em segundo lugar porque o Brasil não ajuda. O Brasil está baixo-astral, pesado, sofrido e louco. Por isso meus olhos foram atraídos por um título na estante: “O mais estranho dos países”. Autor: Paulo Mendes Campos, cronista que admiro.
“E o Senhor disse:
Agora criarei o mais estranho de todos os países. E ele será verde-amarelo e atenderá no concerto das nações pelo nome de Brasil.”
A crônica de PMC conta a história do Brasil a partir de suas características mais poéticas e mais desastradas. “E o brasileiro será o irmão do vento, que ninguém entende.” Publicada na revista Manchete há 54 anos, reflete desânimo com as confusões que os brasileiros fazem e que nos mantém nessa valsa eterna: um passo para frente e um passo para trás. Mas não há amargura nesse desânimo, há humor, candura. Não éramos um caso perdido, éramos um caso estranho. “E criarei para o Brasil oradores eloquentes; a estes darei a ambição, mas não a sabedoria; e criarei uns poucos homens sábios; e a estes não darei nem a ambição, nem a eloquência. A fim de que as discussões se prolonguem e que o povo se perca pela boca dos oradores.”
Sim, continuamos subdesenvolvidos. Também continuamos pitorescos com nossa alegria fora de hora e de lugar
Todos os autores da época de ouro da crônica seguiam nessa toada. O Brasil era pitoresco até aos olhos dos brasileiros. Os cronistas, que conheciam outros países e liam outros autores, enxergavam o subdesenvolvimento do Brasil. Por muito tempo se falou em subdesenvolvimento. Agora não mais. Por que agora somos desenvolvidos ou por que nos acostumamos tanto com a mistura de progresso e pobreza que tomamos isso por normal? Sim, continuamos subdesenvolvidos. Também continuamos pitorescos com nossa alegria fora de hora e de lugar, com o impulso para a confusão e para a falta de método. Continuamos os mesmos, o que significa que continuamos não valorizando a vida daqueles que não fazem parte da nossa família. Nossa família é sagrada, a sagrada família. As outras famílias são agrupamentos falhos e descoloridos que enxergamos mal e porcamente. Se um ou outro membro desse agrupamento desaparecer, morto por bala perdida, novo vírus ou velho vírus ou despencando do alto de um prédio de rico onde o pobre é convidado a usar o elevador para encontrar seu fim, que diferença faz? Há tantos de nós, há tantos brasileiros igualmente dispensáveis. A morte nos ronda e nosso jeito de viver como “irmão do vento” nos empurra para as ruas, até para festas, incapazes de entender a disciplina de uma estratégia de combate a uma pandemia.
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Esta é a pergunta que eu gostaria de fazer ao presidente da República: “Qual a sua estratégia para proteger os brasileiros da pandemia?”
Esta é a pergunta que o Brasil deve fazer para ele e, pacientemente, ouvir a apresentação do plano que, desejamos, tenha sido cuidadosamente elaborado.
Se não tem plano, au revoir senhor presidente. Passe o bastão para quem possa fazer esse mínimo que um país precisa nesses dias, que é ter diretrizes para proteger os cidadãos. Proteger os cidadãos, não jogar os cidadão nas covas. Dez mil brasileiros a menos, que diferença faz? Se forem quarenta brasileiros a menos, aí faz diferença?
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Em um exercício de história virtual, aquela que nunca aconteceu porque um fato-chave levou a um caminho e não a outro (por exemplo: o que teria acontecido na Europa se aquele carpinteiro alemão tivesse conseguido matar o Führer em 1939?), me pergunto como estaríamos vivendo a pandemia se o presidente do Brasil fosse outro -- ou outra -- e que quisesse proteger os brasileiros. Muito cedo, ele teria chamado seu gabinete e ordenado que fossem identificadas as prováveis rotas e formas de contaminação e que se tomassem providências para neutralizá-las. Ele teria ido à tevê para dizer que todos devemos fazer o isolamento social da forma mais radical possível. Ele teria conversado com a oposição. Ele teria visitado hospitais. Teria se encontrado com familiares de vítimas. Teria conversado com empresários e trabalhadores, mesmo os que não bancaram sua campanha. Teria sofrido com a dificuldade para definir quando retomar a vida normal. Teria voltado à tevê para dar bronca nos brasileiros que não levaram a sério suas orientações para ficar em casa. Sim, porque o brasileiro continuaria sendo o irmão do vento e muitos não acreditariam no perigo e reclamariam do exagero e fariam festas e beberiam nas calçadas e jogariam futebol na praia. Meu Brasil brasileiro é assim. Mas como seria se houvesse ao menos uma diretriz nacional, a indicação de um norte e não o esforço constante para provocar e gerar o caos? Até que ponto seríamos tão fracassados e confusos como estamos sendo agora se a autoridade máxima fizesse o mínimo que se espera de quem detém a autoridade máxima e não exatamente o oposto? Nunca saberemos e, no entanto, é nessa realidade alternativa que podemos vislumbrar um país menos ridículo e cruel.