Quem conviveu com uma criança e amou sua inocência para sempre será capaz de invocar a imagem desaparecida daquela infância. Como uma miragem, um fantasma teimoso, a criança de ontem confundirá os olhos de quem a reencontra hoje. Onde está o adulto está a criança, ainda que o corpo negue. O mesmo corpo que, de tão mudado, é outro. A mesma mente que, de tão expandida, não se reconhece mais naquela que foi um dia. Crescer implica se impor como gente grande e exigir que os demais confirmem nossa transformação. Por isso nos distanciamos da criança que fomos e até nos ofendemos se alguém insiste em vê-la em nós – Cala-te, tia! Chega, mãe! Mas alguns de nós não são enganados pela metamorfose. Para este grupo, a criança está sempre lá, presente, nos agora adultos que um dia pegamos no colo.
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Mario de Andrade notou que na poesia de Manoel Bandeira a ternura se apresentava sempre na forma de diminutivos. Bandeira nunca havia pensado sobre aquilo, então refletiu sobre a observação do amigo e concluiu que herdara da mãe a conexão entre diminutivos e ternura. Depois que o filho adoeceu com a tuberculose que marcaria sua vida, ela passou a usar diminutivos ao se referir a tudo que era dele: “O leitinho de Neném...”. Neném, era assim que dona Santinha chamava o filho (“Santinha eram dois olhos míopes, quatro incisivos claros à flor da boca. Era a intuição rápida, o medo de tudo, um certo modo de dizer ‘Meu Deus, valei-me’”). A mãe não só guardou para sempre o apelido de criança do filho, como o apelido evocava aquilo que para sempre ele seria aos olhos dela: um neném. “Só depois que [ela] morreu é que passei a exigir que me chamassem – duramente – Manuel”, escreveria o filho.
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Fosse eu diretora de cinema, faria um curta-metragem sobre o encontro de Bandeira e Machado
Gosto dessa apresentação que ele faz da mãe no poema Os nomes. Em poucos versos, nos faz ver que a dona Santinha não era tola (“uma intuição rápida...”) e estava sempre atenta aos perigos que rodeavam sua família, como uma onça que cuida da ninhada. Não devia ser bonita: ao descrever o rosto dela, Bandeira parece estar descrevendo a si mesmo.
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Tanto meu amigo elogiou Manuel Bandeira em nosso último café, que fui atrás do livro Os Reis Vagabundos e mais 50 crônicas, edição de 1966, da Editora do Autor. Lá está o relato do encontro entre Bandeira e Machado de Assis a que meu amigo se referira. Parece ter algo de máquina do tempo nesse encontro entre Bandeira, que morreu em 1968, e Machado, que morreu em 1908. É difícil colocá-los na mesma imagem, figuras de séculos diferentes. O encontro aconteceu no ano de 1900, conclusão a que cheguei com uma continha simples. Manuel Bandeira nasceu em 1886 e registrou na crônica que tinha 14 anos quando ocorreu o encontro com Machado.
Fosse eu diretora de cinema, faria um curta-metragem sobre o encontro com base no relato de Bandeira: “aos meus quatorze anos, tomei um bonde no Largo do Machado e aconteceu que [sentei] ao lado do velho escritor. Vinha ele lendo um jornal, A Notícia”. O adolescente reconheceu o velho mulato (apenas 60 anos, mas, aos olhos do garoto, um idoso) e não esperou nenhum contato nem lhe ocorreu incomodá-lo. O menino Manuel era dentuço e usava óculos de lentes grossas. Já tinha lido toda a obra do autor de Memórias Póstumas de Brás Cubas. Para sua surpresa, foi Machado quem se dirigiu a ele: “dobrou a folha e puxou conversa comigo. Conhecia-me ele do Ministério da Viação, onde trabalhava meu pai como consultor técnico do ministro Alfredo Maia, e ele como chefe da seção de contabilidade”. Pena que Manuel Bandeira não registra o que conversaram. Podemos supor que Machado perguntou dos estudos e, talvez, para onde ele se dirigia com aquela viagem de bonde.
Como é bom poder escrever que alguém é cordial e bondoso nesses nossos dias em que todos os homens que são notícia são tudo, menos cordiais e bondosos!
O relato desse encontro entre o poeta pernambucano e o romancista e contista carioca está na crônica “Machado de Assis”, cujo tema é outro. O que Bandeira quer contar é que, mesmo sendo cético e sem nenhuma fé nos homens, Machado procedia “com cordialidade e bondade”. Temos uma ideia, então, de como era o grande escritor no dia a dia, no contato com o outro. Era cordial e bondoso. Em outra crônica, Bandeira conta que observava o criador de Capitu de longe, caminhando de braços dados com a esposa Carolina. “Machado de Assis dava a impressão de um homem muito tímido, muito discreto, incapaz da menor maldade.”
Cento e vinte anos depois, em um século que nenhum dos dois escritores sonhou conhecer, estou eu aqui a escrever sobre eles e, especialmente, a invejar Bandeira. Como é bom poder escrever que alguém é cordial e bondoso nesses nossos dias em que todos os homens que são notícia são tudo, menos cordiais e bondosos! Por eles nem vale a pena tocar um tango argentino, o remédio imaginado por Bandeira para os males que não têm remédio.
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Bandeira repete um tema em seus poemas: o esquecimento das pessoas e lugares de nosso passado, que vão se resumindo a um nome conforme perdem consistência: “Teu nome é uma lembrança tão antiga, que não tem som nem cor, e eu, miserando, não sei como o ouvir, nem como o diga.” Ou então: “Até que um dia sentimos, com uma pancada de espanto (ou de remorso?), que o nome querido já nos soa como os outros”. Como poeta que é, ele valoriza a palavra (o nome), mas sofre ao perceber que ela é tudo que resta. É uma obsessão dele que, em algum momento, toca a todos nós, uns mais outros menos, conforme o tamanho das nossas perdas e da nossa resignação.