“Ninguém respeita a constituição
Mas todos acreditam no futuro da nação”
(Legião Urbana)
Primeiro: o que é uma democracia?
No sentido mais conhecido, democracia é um regime de governo em que as pessoas escolhem seus governantes, os quais devem representar os interesses de toda a sociedade, independentemente do status que cada pessoa tenha. Não importa se alguém é velho ou moço, sadio ou não, desta ou daquela cor, todos deverão ser representados.
Esta noção é valiosa, mas reduz a discussão à esfera da política (a partilha do poder).
Todavia, não é só isso o que se produz e distribui em sociedade. Há também bens econômicos e sociais.
Uma democracia, no sentido mais profundo é um tipo de organização social na qual todas as pessoas devem ter sua condição, suas necessidades e suas expectativas consideradas com a mesma atenção e respeito, de maneira a que cada um tenha uma chance de ser feliz a sua maneira.
A definição é ainda abstrata, mas, serve como ponto de partida.
Nesse sentido, uma sociedade democrática justa deve se preocupar com três itens: a) promoção das liberdades; b) distribuição (mais ou menos igualitária) dos bens políticos, econômico e sociais; c) atendimento dos desafortunados (solidariedade). O famoso lema liberdade, igualdade e solidariedade (fraternidade) resume estas preocupações.
Estas preocupações geram a seguinte pergunta: “qual é a concepção política de justiça mais apropriada para especificar os termos equitativos de cooperação entre cidadãos vistos como livres e iguais e a um só tempo razoáveis e racionais, e (…) como membros normais e plenamente cooperativos da sociedade ao longo de toda a vida, geração após geração?” (J. Rawls, Justiça como equidade).
Pois bem, a caracterização geral do problema é relativamente incontroversa.
A polêmica surge quando se discute quais destas preocupações é prioritária. A sociedade deveria priorizar as liberdades, protegendo-as com uma igualdade formal (isonomia) mais fraca? Ou ela deveria se ocupar primeiro de resolver questões econômicas e sociais mais graves (como a miséria, a ignorância, etc.) por meio de formas de igualdade mais incisivas (igualdade de oportunidades, material, etc.)?
Perceba-se que uma sociedade pode ser democrática de diversas maneiras diferentes, ora priorizando as liberdades, ora as formas de igualdade mais inclusivas. Por conseguinte, a depender do tipo de prioridade valorativa (liberdade x igualdade) se definirá o tipo de solidariedade a ser desenvolvida (a do tipo espontâneo, de molde liberal, ou a de tipo cogente, de caráter mais igualitário).
Se isso não bastasse, ainda que se defina a liberdade como valor prioritário, existem maneiras diferentes de pensá-la. Há uma maneira de compreender a liberdade no sentido moderno (negativa, ou como ausência de impedimentos), no sentido antigo (positiva, ou com autoafirmação) e como “não-dominação”. O mesmo vale para os diversos tipos de igualdade.
Alguns devem estar questionando: mas o que a Constituição do Brasil diz sobre toda esta polêmica?
Tudo e nada ao mesmo tempo. A igualdade formal está consagrada no caput do art. 5º. Mas, as outras formas de igualdade também aparecem na Constituição desde o preâmbulo. As formas de liberdade negativa estão previstas nos incisos do art. 5º da Constituição. Mas, as outras possibilidades de exercício das liberdades encontram amparo em outros dispositivos constitucionais.
Isso significa que uma Constituição de uma sociedade democrática pode ser vista sob diversos pontos de vista diferentes. Por consequência, o significado de “respeitar a Constituição” é algo mais complexo do que parece.
A grande tarefa não está, portanto, em ler simplesmente a Constituição, mas, em dar a ela sentidos que proporcionem uma adequada relação entre as liberdades, as igualdades e a maneira de se promover a solidariedade, isto para que cada pessoa tenha uma chance razoável de ser feliz do seu jeito.
A discussão será retomada nos próximos posts. Até lá!
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