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A campanha das prostitutas

Confesso que, quando o assunto é prostituição, eu ainda me debato para compreender o assunto, para me despir de preconceitos, para olhar para o assunto sob a ótica de quem vive a realidade. Este é um assunto delicado e polêmico até mesmo dentro do movimento feminista.

Sabe-que muitas mulheres estão “neste mundo, nesta vida” não porque querem – mas porque foram coagidas e ameaçadas a entrar nele (ameaçadas de fato, mediante agressão ou chantagem de pais e mães, vizinhos, irmãos, cafetões etc.); porque a situação de penúria era tão grande na infância/adolescência que não havia outra escolha para se manter financeiramente; ou então porque o machismo é tão arraigado na sociedade que muitas se encaminham para este mundo naturalmente, afinal, a exploração do corpo feminino, a sua transformação em objeto pelo outro ou o uso de seu corpo para satisfazer alguém é algo tão natural que é normal que o caminho de muitas moças pobres e sem instrução seja esse, e muito pouco é feito para que elas tenham outra opção, quando assim o desejam.

No entanto, é claro que muitas mulheres estão na profissão – sim, profissão – porque querem, por uma questão de autonomia, por uma escolha racional. Não sei se são poucas ou muitas, não há pesquisa sobre o assunto, mas elas existem.

E mesmo as que estão por outros motivos querem ter seus direitos assegurados, após décadas de trabalho, e não querem esperar que a sociedade debata questões de cunho moral para que tenham alguma segurança na velhice. São mães e avós que querem ter direitos como qualquer outro trabalhador brasileiro. Que querem essa segurança justamente para que suas filhas e netas escolham outro meio de vida, para que possam fazer um curso profissionalizante, cursar uma universidade ou trilhar qualquer outro caminho que não as obrigue a se prostituir quando elas não se sentem confortáveis com isso, ou porque simplesmente querem fazer outra coisa.

Neste sentido, a campanha do Ministério da Saúde que traz prostitutas como protagonistas, dizendo que se sentem felizes sendo o que são, e incentivando as demais a usar camisinha, é uma campanha corajosa e muito necessária.

Corajosa porque mostrou de forma aberta as mulheres que sempre foram excluídas da sociedade, tratadas de forma cruel nas ruas, pelos cidadãos ditos de bem, pelos clientes, pela polícia, pelos cafetões. Ridicularizadas ou demonizadas pela mídia, pela igreja, pela escola. Afinal, haveria categoria de pessoas que não merecem aparecer em campanhas do governo, pagas com o dinheiro de cidadãos ilibados? Qual é a lógica? O governo não poderia conscientizar porque quem aparece no cartaz seria indigno, ou faria algo indigno? Porque não pode haver campanhas para promover a saúde de uma parte da população feminina brasileira, sendo esta uma medida que acaba beneficiando toda a sociedade?

E necessária porque era uma excelente forma de combater o risco de contágio por HIV, que cresce a cada dia, e que vitima mulheres casadas com homens que fazem sexo fora do casamento, muitos com profissionais do sexo que não se protegem, pelas mais variadas razões. Uma política de redução de danos que foi abortada devido a pressões sem sentido, uma vez que, por mais que cada um pense de forma diferente, é inegável que tais campanhas de fato ajudam a conscientizar, mesmo que somente por alguns períodos – o que exige, também, campanhas permanentes por parte do Ministério da Saúde, não somente em determinadas épocas, como o carnaval.

Quanto à questão do orgulho que as prostitutas afirmam sentir por fazer o que fazem, não consigo entender porque isso feriria a honra de outras pessoas. O que elas fazem não é crime, e o cliente não é coagido a procurar pelos serviços delas. Quem acha que isso fere a moral, os costumes, a sacralidade do sexo, o corpo ou qualquer outra coisa tem o direito de pensar assim, mas não precisa se valer desses serviços e pode continuar adotando as atitudes que achar mais corretas sobre seu corpo – o que, claro, não significa que agora vamos atentar contra direitos inalienáveis e assim descritos pela própria Constituição, como dispor dos próprios órgãos em troca de dinheiro ou se submeter ao trabalho escravo, por exemplo.

Quando uma campanha dá voz à prostituta que diz sentir orgulho do que faz, há algo por trás disso que não tem nada a ver com fazer apologia da profissão – é uma forma de dizer às demais que elas não podem abrir mão da autoestima, que não devem deixar de ter cuidado em relação à própria saúde, que não podem deixar que o preconceito e o estigma as façam se sentir inferiores e, por extensão, indignas de cuidados – por parte do Estado e por parte delas mesmas. Com o estigma e a depreciação desse trabalho, muitas mulheres que conheci já relataram que não valeria a pena se cuidar, pois elas pouco valiam para si mesmas, para familiares, clientes e sociedade. Se você acha que isso é conto da carochinha, sugiro que converse com uma delas pra ver como isso é real – a não ser que você não ache digno conversar com uma prostituta.

Pensando assim, elas adotam comportamentos de risco, não se protegem, se infectam, infectam os parceiros, aumentam as estatísticas de morte por HIV ou ajudam a lotar as enfermarias e os ambulatórios de Aids.

Não entendo nada sobre este mundo, não me sinto legitimada para dizer se sou contra ou a favor da prostituição do ponto de vista ideológico, mas sou 100% a favor do direito das pessoas de terem sua autonomia respeitada, assim como sou a favor que estas tenham sua ocupação/profissão reconhecida – sou a favor de que sejam inseridas no sistema de seguridade social, por elas e por seus dependentes, que dependem delas financeira e emocionalmente. Quero que tenham acesso à saúde, e que se protejam, que não infectem outras pessoas e que possam ter autonomia e autoestima suficientes para recusarem parceiros que não querem utilizar camisinha. Que procurem a rede pública de saúde para se prevenir e se tratar, pois têm esse direito enquanto cidadãs brasileiras, e que a discussão passe pelo caminho da racionalidade, independentemente de crenças, e não da discriminação.

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