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A mãe que se louva e a mãe que é real


Neste Dia das Mães que se aproxima, observa-se a mesmíssima cena do Dia da Mulher: rosas, chocolate, presentes para a casa e uma série de reportagens sobre a força da mulher que é mãe, da sua entrega, da sua importância, do seu valor, da sua dedicação aos filhos, do sacrifício da maternidade. Como filha que é eternamente agradecida pela mãe que tem – que largou do emprego para cuidar de mim logo que nasci, e que esteve sempre presente em tudo o que fiz -, é claro que não perco mais uma oportunidade de homenagear minha mãe, ainda mais quando a data é uma boa oportunidade para juntar toda a família. E claro que reconheço esse sacrifício, esse amor incondicional, essa dedicação. Mas é preciso fazer um exercício crítico também.

A mesma sociedade que diz valorizar as mães é a mesma que hoje lhes nega uma série de direitos. A começar pelo direito de ser mais do que mãe, e ser auxiliada em seu papel de mãe. Porque ser mãe deve ser maravilhoso, mas, para muitos, esse é o único papel que cabe à mulher. E com isso, muitas mães não conseguem realizar outros sonhos, como o de trabalhar, estudar, viajar, passar um dia inteiro sem fazer nada, ver a tarefa de cuidar dos filhos e da casa dividida com o companheiro. Delas é exigido um sacrifício sobre-humano, e elas jamais podem falhar. Se pensam em ficar longe dos filhos e ter um tempo para si, para seus projetos, são chamadas de desnaturadas, já que o natural é se doar 100% a eles.

Mãe, pelo jeito, também precisa sofrer, e sofrer muito. É por isso que as mães de primeira, segunda e terceira viagem sofrem horrores nas mãos de médicos, por meio de uma violência chamada violência obstétrica, que o mundo, e especialmente o Brasil, insiste em não ver. Que lhes impõe dores excruciantes durante o parto, além de xingamentos, humilhações, tortura psicológica, gritos. Que as impede de ter um acompanhante durante o parto, e que acredita que a mãe não pode decidir como parir, porque o ato de parir deve ser uma decisão do médico. Que parir de forma natural e humana é sujo. A mesma soceidade que diz amar as mães acha que algumas formas de se tornar mãe são sujas.

Essa mesma sociedade que diz amar as mães também lhes nega direitos fundamentais, como os sexuais e reprodutivos. Impede que tenham acompanhamento pré-natal, que saibam onde seu filho vai nascer desde as primeiras consultas, que as faz perambular de hospital em hospital à procura de vaga para parir. Uma sociedade que nega exames básicos, como ultrassom, de doenças sexualmente transmissíveis, vacinas e outros medicamentos que a ajudem a controlar a pressão arterial que, quando fora de controle, mata milhares de mães todos os anos.

Mas a sociedade ama as mães, mesmo não fazendo nada para evitar que elas morram pelas mãos de seus companheiros, deixando seus filhos desamparados, em abrigos, na casa de parentes, nas ruas – o pior pesadelo de uma mãe. Pouco faz para evitar que as mães levem bofetadas, chutes, pauladas e tiros na frente dos filhos, e para mantê-las seguras em casas-abrigo, bem atendidas em delegacias e institutos médicos legais. A mesma sociedade que ama tanto as mães nada fará para evitar que uma criança, jovem ou adulto leve flores para a mãe no túmulo no próximo domingo, porque certamente muitas mães morrerão até lá vítimas da violência doméstica. Afinal, dez mulheres morrem por dia no país, 60% delas vítimas de violência doméstica.

Mesmo sendo tão amadas, as mães também são discriminadas quando… se tornam mães. São despedidas dos empregos, ou têm negado o direito à licença maternidade. Passam a ter menos chance de receber uma promoção, e são consideradas um fardo para o patrão, já que agora precisarão de auxílio-creche, terão de ir a reuniões da escola, ou sair mais cedo quando o filho ficar doente – porque se supõe que essa obrigação é exclusiva delas, claro. As mães também ganham menos, afinal, são mulheres, e mulheres ganham 73% do que ganha um homem no Brasil. Mas é claro que isso não diminui o fato de que as mães são imensamente amadas.

As mães são tão amadas que, mesmo quando não querem se tornar mães, são obrigadas a sê-lo. Mesmo quando se tornam mãe por meio de um estupro, ou são mães de anencéfalos, ou não estão preparadas para ser mães, ou correm o risco de morrer, a sociedade quer obrigá-las a não desistir de serem mães, porque elas são amadas, e não há nada mais importante do que ser mãe. Nada.

Neste dia das mães que se aproxima, nada impede que as mães recebam flores, presentes, chocolate. Se a sua mãe gosta e espera por isso, não custa agradá-la. Ela certamente merece, e não tem culpa do fato de que a sociedade ama as mães, só que ao contrário. Na verdade, é até imperativo que elas sejam mimadas, e recebam mensagens, e se sintam mais especiais do que já são. Porque o amor dos filhos é a única certeza de carinho que receberão enquanto mães. Já que, num contexto maior, as mães parecem estar valendo muito pouco.

Aproveitando o tema, fica como sugestão uma matéria do Jornal Zero Hora, do Rio Grande do Sul, sobre os órfãos da violência doméstica.Confira aqui

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