Uma notícia deprimente e revoltante, como muitas que acompanham a palavra ‘estupro’, foi divulgada esta semana: uma menina de 15 anos das ilhas Maldivas, vítima de estupro pelo padrasto, vai receber 100 chibatadas por ter feito sexo antes do casamento. Isso ocorrerá quando ela tiver 18 anos – mas ela pode adiantar a sentença se estiver disposta a ganhar a punição agora. O filho que ela teve fruto do estupro foi morto pelo padrasto e pai da criança.
Na mesma semana, um dia após ler a notícia, vou ao cinema. Eis que me sento ao lado de uma moça de aparentemente 30 anos, no banco do lado de fora do cinema, que lê o título do livro que estou segurando, ‘A nova história das mulheres no Brasil’, e me pergunta se é interessante. “A vida não deveria ser fácil pra essas mulheres”, comenta.
E claro que a conversa acaba no feminismo, este grande vilão que só trouxe infelicidade e estresse – e eu achando que isso acontece porque a gente saiu de casa pra trabalhar, mas ninguém quer dividir conosco a responsabilidade de lavar o banheiro, entre outras cositas mas. Ingenuidade minha. “Não gosto de ismos – nem machismo nem feminismo”, me disse a minha “colega”.
Logo em seguida: “Pode até ser que o feminismo tenha sido importante, mas agora ele não é mais necessário como na época dessas mulheres do livro, né? Já temos até uma mulher na presidência… tem mais mulher na universidade do que homem, e o salário melhorou bastante… aliás, pra que essa mania de ‘presidenta’? Acho que há um pouco de histeria das nossas amigas. Não me sinto representada”
Parece que dizer que o feminismo não é mais necessário – mais do que criticar o feminismo – virou moda ultimamente. Carla Bruni, Katy Perry, Taylor Swift, todas têm dito por aí que o feminismo é old-fashioned. Bruni, aliás, saiu por aí estampando uma revista – conhecida por só estampar mulheres brancas, de cabelo liso, magras e em roupas da ‘alta-costura’ na capa -, e na entrevista principal, disse que as mulheres de sua geração não precisam do feminismo. Se ela disse que quem nasceu nos anos 60 não precisa do feminismo, pressupõe-se que as que nasceram depois também não, certo? Mas não foi esta semana que uma menina foi sentenciada a 100 chibatadas por ter sido estuprada?
O que muito me espanta é ver mulheres da geração de Carla Bruni – nascidas nos anos 60 – e da minha – do finalzinho dos anos 80 – afirmarem que já conquistamos tudo. Sério? Aliás, não é na França de Bruni que a presidência ainda continua uma quimera para as mulheres? Não é lá que ocorre uma discussão acirrada sobre prostituição, que no fundo é a velha história de discutir sobre quem dá as coordenadas neste grande campo de batalha que é o corpo feminino?
E ao mesmo tempo em que tenho uma graduação, inicio uma segunda, tenho emprego e minha própria casa, pago minhas contas e não dou satisfações a ninguém, não há meninas da mesma idade que a minha sem acesso a escola, vítimas de tráfico de pessoas ou com vários filhos não planejados, sem acesso a noções de planejamento familiar e consulta com ginecologista, apanhando do marido e sem capacitação profissional?
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O que me espanta é que as mulheres que afirmam tal coisa certamente nunca ouviram falar em índices alarmantes de estupro e tentativas de estupro, mulheres morrendo em clínicas clandestinas de aborto ou ficando estéreis por falta de políticas públicas na área, falta de creches, assédio sexual no trabalho, violência doméstica, falta de espaço em cargos de chefia nas empresas, falta de patrocínio nos esportes, propaganda que incentiva o estupro, nada. Existe uma mulher na presidência, algumas no Congresso e tudo bem.
Falo apenas das mulheres porque me parece que, para algumas, o fato de hoje estudarem, trabalharem e poderem sair com quem quiserem parece ser suficiente para dizer que o feminismo it’s over. E porque nos falta a empatia, a solidariedade. Em dezembro, um artigo criticando Carla Bruni no jornal inglês The Guardian afirmou que é muito fácil falar nestes termos quando se é casada com um ex-chefe de Estado. Será que ela conhece o mundo em que vive a menina das Maldivas? Ou só a alta sociedade da moda, da música e do poder político?
E, claro, não é preciso conviver com o perigo que ronda tantas mulheres comuns e pobres – principalmente as negras, as lésbicas, as transexuais. [Faço aqui um mea-culpa: o próprio movimento feminista também precisa aprender a ouvir mais e a agregar mais as diferentes mulheres que compõem o movimento de mulheres, sem destruir suas singularidades enquanto mulheres organizadas em torno de causas específicas].
Isso quando esquecemos que a própria Bruni já foi julgada por ter vida amorosa “liberal” e é descrita pelos jornais como “bonita”, “musa” e “elegante”, mesmo sendo uma cantora de sucesso na França. O que quero dizer é: de onde se tirou essa ideia de que não é mais preciso ser feminista? Alcançou-se a igualdade e não me avisaram? Não, não estou falando somente de mim, mas da mulher que limpa o meu prédio, da que busca atendimento após uma agressão e daquela que mora na periferia, entre outras.
Prepare-se. O oito de março está chegando – junto com os brindes e promoções de farmácia e lojas de calçados, e de revistas, jornais e programas de TV com matérias incríveis sobre ‘como ser feminina com tantas tarefas do dia a dia’, em meio a matéria photoshopadas de modelos (se já seguem o padrão de beleza aceito, por que o retoque?), haverá muito debate sobre o papel do feminismo hoje.
Talvez haja uma nova Talyta Carvalho, a filósofa-discípula do Luiz Felipe Pondé, que escreveu em artigo na Folha de SP do dia 8 de março do ano passado que não deve nada ao feminismo – “Como mulher e intelectual, posso afirmar sem pestanejar: nunca precisei “lutar” contra meus colegas para ser ouvida, muito pelo contrário” -, esquecendo-se de que muitas penaram para que ela fosse à universidade dizer e escrever o que pensa e para que hoje ela pudesse dizer que não precisa agradecer ao feminismo.
Se a pessoa questionar essa importância – e principalmente se ela for uma mulher, uma amiga que sempre pergunta por que tanta insistência em se dizer feminista, afinal o namorado a trata com respeito (o mínimo), ela trabalha e estuda e está bem, e a Dilma está no poder -, pergunta pra ela se ela ouviu falar da menina das Maldivas – uma mulher igual a ela, mas, ao mesmo tempo, e infelizmente, uma mulher imensamente diferente.
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