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Entrevista com Aparecida Gonçalves, secretária nacional de enfrentamento à violência contra as mulheres

Divulgação/ SPM
A secretária-executiva da Secretaria de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres, Aparecida Gonçalves

Relatório divulgado este mês pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) trouxe a público os números da Lei Maria da Penha (LMP) desde a promulgação da legislação de gênero, em 2006. No total, foram mais de 677 mil procedimentos – que dizem respeito tanto a ações penais quanto a inquéritos e medidas protetivas -, distribuídos por 60 juizados e varas de competência exclusiva [que só atendem casos relativos à LMP].

Pouco depois da divulgação, foi realizado em Curitiba o primeiro seminário sobre violência doméstica e familiar da capital, que este ano passou a contar com uma secretaria municipal da mulher. Uma das palestrantes foi a secretária-executiva da Secretaria de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres da Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM) do governo federal, Aparecida Gonçalves.

Durante o encontro, a secretária prometeu aquele que é considerado o programa dos sonhos do movimento de mulheres: um local que concentre todos os serviços especializados de atendimento à mulher agredida, como juizado, delegacia e atendimento psicossocial, que recebeu um nome de efeito: Casa da Mulher Brasileira, parte do programa ‘Mulher, viver sem violência’, lançado no dia 8 de março. Agora, é preciso cobrar a sua implementação do governo federal, que promete abrir as portas do centro ainda este ano.

Em entrevista exclusiva à Gazeta do Povo e ao Blog Mulherio, Aparecida falou sobre os números do relatório do CNJ, a falta de estrutura para atender as mulheres, o veto do prefeito Gustavo Fruet a um projeto de lei que previa o atendimento psicossocial do agressor e sobre a resistência de alguns setores da sociedade à lei.

— Confira também matéria publicada na edição de hoje da Gazeta do Povo sobre a estrutura ainda deficitária do Poder Judiciário no estado para atender os casos relativos à Lei Maria da Penha

O CNJ divulgou recentemente os números relativos aos procedimentos da lei Maria da Penha. Percebe-se que em 2006, ano de promulgação da lei, houve uma diminuição do número de casos. A partir de 2007, eles voltaram a subir. O que esses números revelam?
Quando foi aprovada a lei, em 2006, houve um momento em que a população parou pra analisar se a lei daria certo ou não. Em 2007, quando nós lançamos o Pacto Nacional de Enfrentamento da Violência Contra a Mulher e foram sendo criados os juizados, a população começou a perceber que a lei efetivamente daria certo e, então, as mulheres passaram a criar coragem, a confiar no Estado pra fazer denúncia. Por isso, acreditamos que houve um aumento de denúncia, não um aumento da violência.

Por que demorou tanto tempo para o Paraná assinar o pacto?
Deve ter por sido problemas políticos, pois o governo na época deve ter tido outras prioridades que não o enfrentamento, mas efetivamente, foi um dos últimos a assinar e isso se refletiu no fato de o estado ser um dos que menos investem, que recebem menos investimentos por parte do governo federal. Queremos reverter esse processo, por isso, Curitiba será uma das capitais a receber a Casa da Mulher Brasileira e Foz do Iguaçu terá um programa para combater o tráfico de mulheres na fronteira.

De que forma o estado ganha ao assinar o pacto?
São cinco eixos que poderão ser trabalhados. O primeiro é a implementação da Lei Maria da Penha. O segundo é o fortalecimento dos serviços especializados de atendimento à mulher. O terceiro é a garantia dos direitos sexuais e o combate ao tráfico de mulheres e à exploração sexual. O quarto é o acesso à justiça e o direito à segurança cidadã e o último envolve a garantia de direitos e a autonomia da mulher. Neste caso, as três esferas devem trabalhar para implantar esses cinco eixos e enfrentar a violência contra a mulher em suas mais diversas formas.

Na prática, quais programas contemplarão esses eixos?
Na semana retrasada, a presidenta Dilma lançou o programa ‘Mulher, viver sem violência’, que criará a Casa da Mulher Brasileira, onde serão concentrados num mesmo local todos os serviços necessários, como delegacias especializadas, juizados, promotoria, defensoria, apoio psicossocial e orientação profissional, pra evitar que a mulher fique se deslocando de um lado pro outro, gastando com passagens de ônibus, perdendo tempo. Será criada uma Casa em cada capital do país, por isso, Curitiba será contemplada. E Foz do Iguaçu terá um programa de combate ao tráfico de pessoas e à exploração sexual na fronteira seca.

Haverá outros programas?
Haverá campanhas educativas para prevenir a violência, além da humanização dos serviços que atendem as mulheres vítimas de violência sexual, pois hoje as mulheres têm de ir ao hospital, têm de ir ao IML, e nós vamos facilitar isso. Na hora em que ela for ao hospital para tomar o remédio de contracepção de emergência, haverá a coleta da prova e se for necessário que ela vá ao IML, haverá uma central de transporte que a levará até lá.

Quando essa Casa passará a funcionar?
Pretendemos começar o trabalho em algumas capitais do Brasil já no segundo semestre deste ano. Existe vontade política por parte da prefeitura e do estado para que Curitiba esteja nesta lista.

Assessoria de Comunicação/Presidência da República

Desde 2006, foram computados 677 mil procedimentos, entre ações penais, inquéritos policiais, medidas protetivas etc. É muita coisa?
Sim, se você pensar que isso só leva em conta os números de juizados especializados [que atendem somente casos de violência doméstica], é muito, pois nós temos apenas 60 juizados e varas especializadas, considerando que alguns abriram há um ou dois anos. É uma demanda muito grande. E se você analisar o número de medidas protetivas concedidas, 280 mil, também é um número alto. Mas se de um lado é alto, de outro é bom, pois pode significar que 280 mil vidas podem ter sido salvas, então, isso é um dado muito importante que mostra a eficácia da Lei Maria da Penha.

Mas não há saturação desses serviços? Seria necessário criar mais juizados?
Sim, o número é muito baixo, não dá conta, é preciso ter mais, pois o juizado, com a promotoria e a defensoria, é garantia de acesso à justiça dessas mulheres. Então, é pouco, e precisa aumentar, e muito, esses números para que a gente consiga erradicar a violência contra a mulher.

Quais são os outros gargalos?
Um dos maiores gargalos que nós temos é a questão do atendimento psicossocial para as mulheres. Há poucos centros de referência que façam esse atendimento, além de delegacias especializadas. Esses serviços especializados básicos como um todo não chegam a 10% dos municípios brasileiros. É preciso que mais municípios invistam nesses serviços pra que as mulheres efetivamente se sintam seguras.

Houve um caso aqui em Curitiba de uma mulher que foi vítima de um estupro coletivo e não foi atendida pela delegacia especializada, com o caso sendo transferido para a Delegacia de Furtos e Roubos. Qual é a opinião da SPM sobre o assunto? E como mudar esse cenário?
Nós precisamos trabalhar dentro da perspectiva do atendimento especializado, com formação permanente. E nós precisamos, dentro do serviço público, seja na Segurança Pública, no Judiciário, na Assistência Social ou na Saúde, ter em mente que é importante ir para as delegacias especializadas aquele profissional que tem o mínimo de vontade de trabalhar naquele lugar. A delegacia não pode ser um espaço visto como um castigo. Deve ir pra lá o profissional que tem condições de fazer um bom atendimento, pois a delegacia é um dos locais que mais faz atendimento. Isso é em todo o país e com o Paraná não é diferente. A delegacia é a porta de entrada.

E mais: tem de ser um tratamento diferenciado, pois a violência é diferenciada. Você não tá tratando com um bandido da rua, um desconhecido. É o companheiro de 35 anos da mulher, pai dos filhos dela. E nem por isso deixa de ser um caso de polícia, isso é importante de se dizer. A lei diz que tem de ser instaurado um inquérito e que a renúncia da mulher só pode ser feita perante o juiz, não perante a delegada. Claro que esse não é um problema só do Paraná. Em todo lugar é preciso saber escolher os profissionais que vão prestar atendimento especializado.

Recentemente, o prefeito Gustavo Fruet vetou um projeto de lei que previa o atendimento psicossocial para o agressor, o que é previsto em lei. Apesar de haver preocupação com o tema demonstrada com a criação de uma secretaria municipal da mulher, isso não vai contra a luta para erradicar a violência doméstica?
Bom, eu acho que o agressor é um criminoso, não é um doente. Começa por aí. Por que criar um serviço psicossocial pro agressor e não criar pra mulher, que apanhou por anos, que está numa condição de submissão, que não é mais sujeito de direitos? Acho que essa é a primeira questão. Para o agressor, não é atendimento psicossocial, é um serviço de responsabilidade e reeducação, que envolve uma outra perspectiva, um outro olhar, com outros profissionais. Se tivesse sido criado um serviço deste tipo, eu diria que o prefeito estava errado, mas neste caso ele está certo. Tem de ser um serviço de responsabilização. O agressor tem de saber da responsabilidade de seus atos. Ele não pode ser tratado como doente, pois ele não é doente, ele é um criminoso. Segundo a Lei Maria da Penha, a violência contra a mulher é crime.

Sete anos após a criação da lei, ainda há grupos que afirmam que ela é inconstitucional. Há quem ache que ela é uma lei que privilegia a mulher. O que a senhora tem a dizer sobre o assunto?
Eu diria que privilégio é pode bater e não ser punido. Eu diria que privilégio é ganhar mais pelo mesmo tipo de trabalho. Privilégio é chegar em casa e ir ver televisão quando a mulher tem de cuidar dos filhos, lavar, passar e cozinhar. E privilégio é achar natural poder bater em mulher. Ela não é um privilégio, ela é uma ação afirmativa. E quem diz que a lei prende a torto a direito não conhece a lei, ou está mentindo. A lei só prende em dois casos: flagrante e descumprimento de medida protetiva, de decisão judicial. Em que sentido esse crime é tratado de forma diferente dos demais? Ela apenas passou a tratar como caso de polícia aquilo que antes era tratado como questão pessoal.

E o Estado brasileiro, através de suas diversas esferas, legitima esta lei – por meio do Legislativo, que aprovou esta lei, e do Judiciário, que votou pela constitucionalidade da lei, e do Executivo, que está implementando a lei. O Estado diz o seguinte por meio dessas ações: existe uma estrutura de desigualdade social e de gênero neste país, e são necessárias ações afirmativas para que as mulheres sejam colocadas em condições de igualdade com os homens. E com respeito, que é o que efetivamente muitos desses homens não têm. Porque se a cada 15 segundos uma mulher sofre violência no país, e ela parte, na maioria das vezes, do companheiro, namorado, marido, significa que falta respeito às mulheres brasileiras.

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